Opinião
[676.] IKEA
O slogan vem na capa do catálogo da IKEA, distribuído por centenas de milhares de caixas do correio. Diz: "Criado para pessoas, não para consumidores."
Na primeira página do livro vem um texto que procura justificar o slogan com retórica lírica.
Começa por repetir o slogan trocando a ordem dos elementos: "Na IKEA, criamos para pessoas, não para consumidores." Como isto precisa de ser inculcado, o texto desdobra-se em exemplos: "Criamos para pessoas que deixam a comida queimar, para adolescentes que insistem em comer no sofá (…), para namoradas que exigem o pequeno-almoço na cama."
Os exemplos são insidiosos, porque a "humanidade" das situações implica instrumentos como tabuleiros, frigideiras, talheres, sofás, etc., objectos de consumo que as "pessoas" usam depois de as comprarem enquanto "consumidores".
O slogan diz preto no branco que "pessoas" e "consumidores" são realidades diferentes. Há uma ampla produção de ideologia de defesa dos chamados "serviços públicos" europeus, com grande êxito no mundo académico, baseados nesta oposição entre pessoas e consumidores. Essa ideologia chegou a ser aplicada em Portugal à RTP, que seria, segundo os seus arautos, para "cidadãos", enquanto os desprezíveis canais privados fariam conteúdos para "consumidores", tratando-os, portanto, abaixo de cão. No caso da RTP, esta ideologia esfumou-se porque o operador do Estado tem publicidade, vende e promove produtos nos seus "talk shows", e, no geral, concorre com os malandros dos privados para conquistar "consumidores". Entretanto, esta ideologia fez escola em países onde os respectivos operadores do Estado cumprem melhor o seu contrato de "serviço público".
Trata-se, ainda assim, de uma construção ideológica com uma comprovação prática vazia. Aparentemente morta a luta de classes, alguns académicos inventam outras lutas. Neste caso, o consumidor seria cidadão, por exemplo, ao escolher um produto biológico no supermercado em vez de comprar a "junk food" imposta pelo capitalismo. O que esta ideologia faz é render-se ao capitalismo criando a categoria do bonzinho consumidor de produtos capitalistas bonzinhos.
A IKEA cria a categoria do consumidor bonzinho chamando-lhe "pessoa". Rejeita que esta "pessoa" que consome produtos IKEA seja "consumidora", embora lhe ponha à disposição carrinhos de supermercado e outros quase de armazém para ela comprar nos enormes espaços comerciais da marca.
O slogan é uma variante da publicidade que promete vida boa e muita atenção ao cliente, aliás, consumidor, aliás, pessoa. Sendo a IKEA uma potência mundial do comércio, com lojas-armazéns enormes, cheias de consumíveis produzidos em quantidades industriais, precisa de incutir a ideia de que cada móvel foi individualizado, pensado como o que faz para nós o marceneiro do bairro. "Em minha casa só tenho de ser eu", diz outro slogan da marca. O cliente é humanizado ("se deixar o esparguete cozer demasiado, não se preocupe. São coisas que acontecem a todos") para se sentir bem na loja-armazém — e encher o carrinho da IKEA de móveis, candeeiros e trens de cozinha. São consumíveis que permitem à "pessoa" viver na sua casa "maravilhosos momentos imperfeitos". O catálogo não diz que os produtos são perfeitos para isso, mas subentende-se que a multinacional capitalista os cria com perfeição para pessoas imperfeitas como nós. Quando entramos na loja IKEA, não consumimos, já que o catálogo prefere outro verbo: diz que "encontramos" o que precisamos. É melhor nem pensar que, se os produtos IKEA não fossem criados para consumidores, a IKEA pura e simplesmente não existia.