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[601.] CUF, Nobre

Há anúncios televisivos que se perdem nas suas próprias narrativas. Pegam em coisas simples e tornam-nas complexas, enredando-se na complicação.

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O grupo de saúde CUF faz 70 anos. Para informar o público, não se limita a dizer que a CUF faz 70 anos. Cria uma narrativa — neste caso simples — para chegar a um slogan complicado e contraproducente: "A CUF não". Uma marca que diz não? Eu rejeitaria tal slogan, mas assim o quiseram a CUF e os seus publicitários. A narrativa mostra um parto num hospital. O narrador diz que é "a Joana". E a narração termina com o slogan: "A Joana pode ter nascido ontem. Mas a CUF não." 

 

Nos anúncios de imagem fixa a narrativa resumida no slogan é mais curta: "A Mariana [ou o Pedro] nasceu ontem. A CUF não." O nascimento da criança é afirmativo. A referência à CUF é negativa. Quis-se passar a ideia de que o grupo privado CUF, com "70 anos de saúde", é experiente e acumulou saber, expressões presentes nos anúncios de imprensa. Essa ideia ter-se-á cristalizado na expressão vulgar "eu não nasci ontem". Os publicitários terão andado à volta da expressão, que não fica tão perceptível na terceira pessoa ("ela não nasceu ontem"), e arranjaram a narrativa do parto, para chegarem ao "inconseguido" slogan "A CUF não". Suponho que seria melhor para o cliente dos publicitários que o slogan dissesse a "CUF sim" a qualquer coisa.

 

Narrativa bem mais complexa é dos afiambrados "Cuida-t+" da marca Nobre. A ver se tenho espaço para a resumir: vemos um velho, depois outro, depois outra. "Repara bem: este poderias ser tu", diz o narrador. Estes velhotes são hiper activos. Correm, diz o narrador, para chegarem primeiro ao melhor quarto da pousada. São os primeiros a espetar o guarda-sol na praia. São velozes na bicicleta. Jogam à petanca e à bisca. Dançam muito, quais Travolta e Thurman no "Pulp Fiction". E são muito corajosos, fazem coisas do género de recusar assinar um contrato dizendo "não, senhor director!" (Faz lembrar os contratos do gato GES por lebre BES).

 

Depois de tantos idosos empoderados, o anúncio faz inversão de marcha narrativa: não se destina aos velhos, mas à juventude. Passa das aventuras da terceira idade para um corredor de supermercado com um armário de charcutaria cheio de produtos Nobre. Um rapaz cruza-se com um velho. Estão vestidos da mesma maneira, mas não é o jovem que veste como o velho, é o velho que veste como o jovem. O jovem Narciso revê-se por antecipação no velho saudável. O narrador deixa de narrar para regressar à invocação, dirigindo-se aos jovens: "Se queres chegar a ser um deles [um dos que chegam aos 90], tens de começar agora. Nobre apresenta Cuida-t+, uma gama de produtos com teor de sal reduzido, porque há algo melhor do que chegar aos 90: poderes desfrutá-los." Enquanto a voz narra, o rapaz, que passaria pelos produtos Nobre sem dar por eles, depois de olhar para o velho/ele em velho, pára, absorve toda aquela epifania e pega numa embalagem de "Fatias Finas - Fiambre da Perna Extra". No último plano já o moço põe na mesa — é o seu braço, com a mesma camisa que ele (e ele em velho!) tinha no supermercado — um prato com afiambrados que ficará a compor um centro de mesa de embalagens de Cuida-t+.

 

Uf! Que canseira. A mensagem escondida é simples: Cuida-t+ é o elixir da eterna juventude; se queres chegar aos 90 com a frioleira de agora, consome afiambrados com menos sal do que tinham antes. Para chegar aqui, a narrativa perdeu-se nas aventuras da terceira idade. O marketing e a publicidade andam há décadas a conquistar espíritos e corações com o "storytelling" "científico", mas não estarão a complicar demais?

 

eduardocintratorres@gmail.com

 

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