Opinião
Política monetária à consignação – II
Os defensores da austeridade vêem, no recente apelo de Mario Draghi a um papel mais activo da política orçamental e na possibilidade de lançamento de um programa de QE na Europa, um desafio ao rumo seguido até hoje.
A incomodidade do ministro das Finanças alemão foi, de resto, bem notória. Quase podíamos adivinhar o seu pensamento: "Mais doping para viciados em droga sem dinheiro para sustentar maus hábitos!".
Sem colocar em causa a necessidade de eficiência da máquina pública e sem colocar em causa a óbvia necessidade de austeridade perante a imposição dos credores, num contexto em que a Europa não possuí ainda, uma rede de segurança adequada para as suas dívidas públicas; existe, no entanto, uma outra visão possível. Os defensores desta intervenção, não vêem o estímulo artificial da procura agregada como "doping" económico, mas como um "remédio" necessário para repor o equilíbrio "químico" de um organismo incapaz de o fazer por si só. A economia europeia está já madura, esgotaram-se muitos balões de oxigénio inerentes à abertura da economia de mercado, e os efeitos sobre o crescimento e o emprego associados ao crescimento da população e ao crescimento do peso do crédito privado têm vindo a esgotar-se. Num contexto em que a dívida pública não é suportada pelo BCE, também o efeito-pirâmide associado ao crescimento dessa dívida se tem vindo a esgotar. Agora, sem perspectivas de segurança no emprego ou de crescimento do seu poder de compra, os consumidores não arriscam. Sem perspectivas de crescimento da procura dirigida aos bens e serviços que produzem, as empresas pouco investem. A oferta não consegue gerar a sua própria procura. A poupança não se transforma em investimento real. Para repor o equilíbrio, a Europa precisa de "tomar um comprimido por dia".
É neste ponto da história que entra a política monetária à consignação. O BCE deveria poder financiar uma fracção dos gastos públicos de todos os países do Euro, com empréstimos perpétuos (ou perpetuamente renováveis), com juro nulo ou simbólico, como sucede no Japão. Esses empréstimos seriam destinados a fins consignados e previamente limitados, como o pagamento de reformas acima de 65 anos, até um dado limite. O suporte monetário poderia ser extensivo ao pagamento de compensações, em caso de catástrofe (convém lembrar o papel essencial do Banco do Japão após o tsunami de Fukushima). Deste modo criava-se um suporte directo à procura agregada, limitavam-se os riscos de inflação e assegurava-se uma distribuição proporcionada dos benefícios da expansão monetária. Ficaria assim salvaguardado um suporte directo à procura agregada junto de uma fracção da população que tem uma elevada propensão a consumir e que tem uma taxa de participação pouco relevante no mercado laboral. Na prática, este financiamento do BCE funcionaria como uma dádiva e poderia ser retirado ao total da dívida financiada no mercado, o que facilitaria o encontro de uma trajectória de solvência para os países mais endividados (sem necessidade de reestruturação), e um alívio das contas públicas para todos os países que vêem crescer de ano para ano, os encargos com pensões, sem equilíbrio à vista (Alemanha incluída).
A esta acção, deveria somar-se a possibilidade de intervenções esporádicas em caso de crise de liquidez da dívida pública. Isso seria até mais fácil se uma parte mais sénior dessa dívida (até 60% do PIB) fosse financiada por Eurobonds (sem risco de insolvência e de liquidez, dado o limite e a senioridade), deixando a dívida excedentária e subordinada, acima de 60% do PIB, ao cuidado de emissão de cada país. O suporte do BCE a esta dívida seria limitado pelo princípio de "no bailout" (seria necessária a demonstração de capacidade de inversão da trajectória do peso da dívida face ao PIB).
Sem o suporte do BCE, as políticas orçamentais expansionistas de estímulo da procura agregada, implicam grande vulnerabilidade dos países que se financiam nos mercados. Já sabemos que os humores dos mercados variam. Hoje, confiam e aplaudem. Amanhã, desconfiam e acusam. Seria positivo, por isso, que o programa de QE simbolizasse não apenas um suporte directo à procura agregada, mas também um suporte duradouro à liquidez da dívida pública, sem que a Europa necessite de abdicar do princípio de "no bailout" em caso de insolvência (disciplina orçamental), ou necessite de enveredar por esquemas federalistas para os quais não está preparada.
Economista