Opinião
O tabu Europeu - III
Provando-se a existência de um problema crónico, abre-se a porta a um uso continuado da política monetária, ainda que ajustando a dosagem quando necessário. O que falta é dar o devido corpo teórico ao que estamos a assistir e assumir a artificialidade do suporte necessário
Existe, na Europa, um tabu em torno da política monetária de expansão quantitativa (QE). Descontados os seis argumentos analisados no primeiro artigo desta série, os quatro últimos argumentos, relativos aos riscos de inflação no curto e longo prazos e à geração e distribuição de benefícios da política monetária, são aqueles onde devemos centrar uma discussão mais séria.
Oitavo argumento: "A política monetária gera inflação no longo prazo". A discussão sobre os efeitos de longo prazo na Europa deve centrar-se nas mesmas variáveis analisadas no curto prazo: a dose de expansão monetária, o comportamento da velocidade de circulação da moeda, o nível de influência sobre a formação de preços e taxas de câmbio, e a capacidade produtiva disponível.
É claro que é sempre possível imaginar uma alteração drástica dos parâmetros da equação que nos façam temer pela pressão da massa de liquidez "à solta" no mercado sobre a oferta disponível, gerando inflação. No entanto, nessas circunstâncias, o acréscimo de massa monetária gerado por uma política expansionista "choveria no molhado". Já há poupança suficiente em rotação nos mercados financeiros para causar problemas dessa natureza. O que importa saber é se tal alteração brusca dos parâmetros é verdadeiramente expectável ou não. A experiência - que é já de "longo prazo" nos EUA, Japão e Reino Unido - diz-nos que não. O que se passa na Europa?
A velocidade de circulação da moeda não é constante, mesmo em prazos longos. A maturação da economia, ao saciar as necessidades de consumo dos detentores de maiores níveis de rendimento reduzindo a sua propensão a consumir, e ao tornar as oportunidades de investimento das empresas mais raras, contribui para um declínio progressivo da velocidade de circulação da moeda. A concentração sectorial e de rendimentos constitui outra influência estrutural negativa.
Por outro lado, a influência da Europa sobre o nível de preços mantém-se. É certo que a subida do preço das matérias-primas por pressão dos Países em vias de desenvolvimento é uma fracção de inflação não controlável. Mas isso constitui mais um argumento (e não menos um), em favor da acomodação desse aumento pela massa monetária. No domínio cambial, a circunstância de os EUA, Japão e Reino Unido, usarem uma política semelhante, anularia os riscos já diminutos de fuga do Euro, para não mencionar a facilidade de os outros Países defenderem as suas moedas dos movimentos de apreciação face ao Euro que poderiam gerar inflação na Europa.
Finalmente, o excesso de capacidade produtiva actualmente existente tende a perpetuar-se, num mundo que aderiu em larga escala à economia de mercado. Descontando flutuações de curto prazo, há uma tendência negativa de longo prazo das taxas de crescimento dos países desenvolvidos. As recessões são mais frequentes e mais prolongadas. O "desemprego natural" vai aumentando. A pressão da procura nos países desenvolvidos associada a efeitos-pirâmide como o crescimento da população ou o crescimento do peso do crédito na economia, não voltará facilmente.
Em face de tudo isto, a questão fulcral não deveria ser tanto a de saber se temos pela frente um problema estrutural de excesso de oferta ou falta de procura (porque temos), mas sim saber qual o doseamento correcto da expansão monetária para contrariar esse fenómeno (entre outras medidas possíveis, naturalmente). As hesitações do FED sobre o programa de expansão quantitativa, traduzem essa mesma insegurança sobre a "dose correcta" a aplicar e o FED deveria também alterar a orientação destes fundos (a compra de obrigações hipotecárias parece desajustada). No caso europeu, esse perigo poderia ser controlado não apenas pelo conhecimento técnico do BCE, mas por uma política monetária à consignação, limitada a usos transversais, pré-acordados, no espaço do Euro. Seria o caso de uma emissão monetária para financiar os Estados-membros na justa medida do pagamento de pensões de pessoas acima de uma determinada idade e até um dado valor. Trata-se de um limite objectivo e auditável. A parte da dívida pública suportada por estes créditos perpetuamente renováveis junto do Banco Central (enquanto satisfeitas as condições), deveria ser excluída do conceito mais estrito de dívida pública colocada no mercado, do mesmo modo que os eventuais juros da mesma poderiam ser excluídos do conceito estrito de deficit orçamental.
Provando-se a existência de um problema crónico, abre-se a porta a um uso continuado da política monetária, ainda que ajustando a dosagem quando necessário. O que falta é dar o devido corpo teórico ao que estamos a assistir e assumir a artificialidade do suporte necessário. O BCE tem de estar dotado das ferramentas de trabalho necessárias para enfrentar esta crise e o que ainda está para vir.