Opinião
Política monetária à consignação – I
Já não é segredo. O BCE prepara o lançamento de um programa de QE, pela compra de dívida em mercado secundário. A medida visa estimular o consumo e o investimento na Europa, pela descida das taxas de juro.
O que parecia impossível a muitos, a ponto de recusarem debater as virtudes e defeitos da hipótese (como se a opinião do poder político alemão sobre o QE tornasse a discussão inútil), é afinal, possível.
Contudo, a discussão e os desafios técnicos e políticos não terminam aqui. O que é necessário?
Em primeiro lugar, Mario Draghi sublinhou a existência da falta de procura agregada na Europa. Colocar esta verdade básica no centro das atenções é já em si, um avanço, pois a ideia tem sido quase sempre ignorada, em favor de discussões intermináveis sobre as "reformas estruturais", a competitividade e o modo de expandir… a oferta. A verdade é que a oferta não está a conseguir criar a sua própria procura agregada e são necessários estímulos artificiais. Em complemento, falta ainda reconhecer que a Europa necessita de uma estratégia de equilíbrio económico e emprego que não passe pela cópia do modelo alemão e pelo pressuposto de um saldo externo favorável com o resto do mundo. Os números da Europa em geral, e da Alemanha em particular, não enganam: não fosse um saldo externo muito favorável, e a economia, já de si estagnada, afundar-se-ia, projectando o desemprego para novos patamares. Não fossem os EUA a alimentar, através de deficits crónicos, pagos na sua própria moeda, as reservas em divisas de muitos países que depois importam bens e serviços europeus, e esta vulnerabilidade seria ainda mais notória.
A Europa necessita, portanto, de assumir as suas responsabilidades. A aposta na neutralidade tendencial da sua política orçamental e monetária, e a condenação daqueles que pretendem seguir outro rumo, representa uma contradição insanável com o facto de o superavit externo (que vai permitindo, por ora, que a economia europeia não se afunde mais) se alimentar da manutenção das políticas monetárias e orçamentais expansionistas no resto do mundo. Se os dirigentes não entenderem esta necessidade estratégica de equilíbrio auto-sustentado (sem excluir a hipótese de aumento de trocas com o exterior), e de uso da política de rendimentos, orçamental e monetária em favor do incremento da procura, o eleitorado acabará por se afastar ainda mais dos partidos pró-europeus, em busca de miragens. Sobrarão os cacos.
Em segundo lugar, no pressuposto de que a compra de activos pelo BCE poderá incidir, a prazo, sobre dívida privada e pública, cabe perguntar: porquê agora, a compra de dívida privada? Para além dos problemas de equidade na escolha dos títulos, há dois aspectos que tornam esta compra num gesto mais simbólico do que verdadeiramente útil: por um lado, se o BCE pudesse optar por um compromisso de manutenção de liquidez das emissões de dívida pública dos países europeus, seria praticamente certo que as taxas de juro da dívida privada acompanhariam as taxas de juro de dívida pública, sem necessidade de intervenção directa. Afinal, a falta de perspectivas de crescimento da procura agregada está a condicionar a transformação da poupança em investimento real e o que não falta é dinheiro a rolar nos mercados financeiros, em busca de rendimento que os títulos de dívida privada podem oferecer. Além disso, parece claro que a descida das taxas de juro dificilmente estimulará a procura agregada, numa fase em que as empresas e particulares mostram níveis de endividamento já elevados e não existem perspectivas de venda que justifiquem o recurso significativo ao crédito para novos investimentos reais.
Estas críticas ao QE do BCE, conduzirão, cedo ou tarde, à discussão que verdadeiramente importa sobre a orientação orçamental para a expansão da procura agregada, sem agravar os riscos de insolvência dos Estados da UE; sobre a expansão da massa monetária em suporte da política orçamental, no respeito pelos princípios de controlo da inflação e de uma distribuição proporcional dos benefícios inerentes a essa expansão; e sobre o suporte parcial do BCE à emissão de dívida pública, no respeito pelo princípio de "no bailout" em caso de insolvência. Tudo isto, é claro, sem facturas extraviadas, a pagar pelos contribuintes alemães. Bem sei, parecem objectivos incompatíveis. Mas não são. A Europa precisa de uma política monetária à consignação e de um esquema de emissão de Eurobonds e dívida subordinada que podem compatibilizar, de facto, todos estes objectivos.
Economista