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10 de Novembro de 2014 às 00:01

País de primeira

Desde a implantação da 3.ª República, e particularmente na primeira década deste século, Portugal assistiu à construção em volume sem precedentes de estádios e arenas com financiamento público.

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Este fenómeno atingiu o seu pico com a construção de raiz, ou reconstrução, de dez estádios para a realização entre nós do Campeonato Europeu de Futebol de 2004. Este evento, o primeiro torneio de primeira grandeza realizado em Portugal, foi um assinalável sucesso quer organizativo, aspecto que mereceu da UEFA o qualificativo de "melhor e mais bem organizado Europeu de sempre", quer desportivo, pois a equipa nacional foi, também pela primeira vez, vice-campeã num torneio continental entre equipas nacionais seniores. O investimento nos dez estádios edificados de raiz ou renovados (sete com capacidade para 30.000 espectadores cada, dois com capacidade para 50.000 espectadores cada e um, mais luminoso e que recebeu a final, com 65.000 lugares,) atingiu €665 milhões, dos quais €104 milhões (16%) constituíram investimento público. Com menos impacto mediático, registaram-se edificações de arenas, um pouco por todo o país, geralmente sob o impulso de dinheiros providenciados pelas autarquias.

 

As depauperadas finanças da República asseguram que o fenómeno do investimento público em estádios e arenas está remetido à categoria de curiosidade histórica. Apesar disso, nestes tempos de maior parcimónia, o tema do investimento público em provas desportivas de primeira linha voltou a merecer destaque com a interrupção do apoio do Turismo de Portugal ("TdP") ao (quase) homónimo WRC Vodafone Rally de Portugal, etapa portuguesa do World Rally Championship organizado desde 1973 pela Federação Internacional do Automóvel. Nos últimos sete anos, o TdP, co-patrocinador com a Vodafone e a BP, abonou a organização do Rally de Portugal (a cargo do ACP) com €6,4 milhões, e em 2015 não vai reincidir, preferindo canalizar montante equivalente (segundo a imprensa, cerca de €900 mil) para apoiar a instalação da easyJet no Francisco Sá Carneiro. A opção orçamental do TdP passou assim dos World Rally Cars para os A320 da easyJet, presumivelmente por entender que aqueles voam mais baixo do que estes, no que à rentabilidade da aplicação dos dinheiros públicos diz respeito.

 

As motivações dos poderes públicos, sejam estes a República ou os municípios, para suportar investimento em eventos e infra-estruturas desportivos são razoavelmente consensuais. Os municípios costumam comungar do desejo de um estatuto de "cidade de primeira", aqui no sentido de domiciliar jogos da Primeira Liga de Futebol ou das Ligas das modalidades mais mediáticas - Basquetebol, Andebol, Hóquei, Futsal. A nível nacional, a motivação para a realização de um grande evento desportivo será, pelo menos parcialmente, a de alcançar o estatuto de país "de primeira", no sentido da demonstração de capacidade de organização de grandes eventos internacionais.

 

Questões de estatuto à parte, podem elencar-se sem esforço motivações de cariz económico, como (i) a satisfação de um grupo local com elevada procura, normalmente inelástica, por entretenimento desportivo de primeira qualidade; (ii) a obtenção de apoio por parte de um grupo alargado da população que, não procurando a assistência aos eventos, deriva satisfação da mera existência destes na sua área de residência; e (iii) impacto promocional no turismo e na restauração locais, com o tráfego inerente aos jogos ou aos eventos.

 

No caso da recente decisão do TdP, as localidades afectadas pela decisão de reafectação dos fundos são do Norte do país, em cujas difíceis estradas de terra o ACP desenhará em 2015 um Rally justamente reputado entre os amantes do automobilismo, depois de dez anos no Algarve e no Baixo Alentejo. Também o Sá Carneiro é nortenho, pelo que o TdP decidiu reafectar os seus dinheiros entre investimentos, mas não entre geografias, o que facilita uma comparação. De acordo com o ACP, o fluxo de turistas atraídos pelo Rally de Portugal é de 300 a 400 mil / ano, que gastaram para tal, nos últimos sete anos, cerca de €350 milhões. O Sá Carneiro, de acordo com a ANA, movimenta cerca de seis milhões de passageiros/ano, e a easyjet é listada como a terceira companhia que para tal mais contribui, com uma quota reivindicada de cerca de 20%. Admitindo com "fair play" que o TdP tenha decidido com base na análise custo-benefício que se ensina nas Escolas de Gestão, é pena que a ponderação do factor "país de primeira" tenha, aparentemente, descido.

 

Professor Associado da ISCTE Business School

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