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26 de Maio de 2020 às 19:30

O impossível aconteceu

O tabu alemão que Merkel quebrou, abre caminho à solução. A parede ruiu quando já praticamente todos tinham perdido a esperança e considerado que o projecto europeu estava condenado.

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Talleyrand dizia que, por vezes somos surpreendidos pelos acontecimentos, de tal forma que o impossível se torna inevitável, sem nunca ter sido considerado sequer como provável. Talleyrand sabia o que dizia, porque navegou os corredores do poder através de um dos períodos mais conturbados da História da Europa, já que foi Príncipe ao tempo de Luís XVI, depois destacado elemento da Assembleia que levou à revolução, passou incólume pelo Terror de Robespierre, ajudou Napoleão a conquistar a Europa, e por fim, derrotado e exilado Napoleão, regressou ao poder como ministro de Luís XVIII, no Ancien Regime renovado. A esta incrível personagem são atribuídas também outras pérolas, como, ao constatar a decrepitude do governo de Luís XVIII, dizia que os Bourbon não esqueceram nada, mas também não aprenderam nada. Destes Bourbon, há como se sabe, muitos.

O dia 18 de Maio de 2020 foi provavelmente um desses extraordinários momentos, em que o impossível se materializa aos nossos olhos. Ver Macron e Merkel lado a lado (ainda que virtualmente), dizer o que durante tanto tempo foi indizível, faz recuperar o comentário de Talleyrand. Claro que falta ainda ver como as palavras se transformam em actos, mas um recuo neste momento teria custos difíceis de avaliar. Agora é um momento de serena fé no futuro colectivo.

Muitos sabem (muitos não percebem também) que o projecto europeu nasceu para resolver uma impossível quadratura do círculo. Quem lançou e desenvolveu o projecto europeu fê-lo porque sabia que a condição primeira para a Europa sobreviver é acabar com as guerras, que ciclicamente destroem a riqueza acumulada e as populações que aqui vivem. Ora para isso ser possível, é essencial desvalorizar o significado atribuído às nações, que, por seu lado, são só a referência cultural mais marcante de todos os cidadãos europeus. Este paradoxo explica a forma arrevesada e imperfeita, com que algumas das decisões (as mais importantes) aparecem na Europa. E é assim desde o início do projecto, com a Comunidade do Carvão e do Aço de 1950, que veio a dar origem à CEE em 1957, depois ao Mercado Comum e por fim à União Europeia.

O euro é um exemplo flagrante. Um espaço económico precisa de uma moeda, mas levar os alemães, franceses e outros a aceitar perder esse identificador nacional, não era uma operação fácil. Muito pelo contrário, parecia impossível. O milagre foi que o euro arrancou, mas teve de arrancar coxo, na convicção de que no futuro, haveria oportunidade para reparar os erros. Infelizmente não foi isso que aconteceu. Nenhum líder europeu nos últimos 20 anos tentou sequer fazê-lo e quando veio a crise de 2007, o rei ainda estava nu. Não fosse Draghi fazer o que agora o Tribunal Constitucional contesta, o euro teria desaparecido e com ele, muito provavelmente, o projecto europeu. Os constitucionalistas alemães teriam recuperado o marco e os nacionalistas de todas as freguesias poderiam de novo colocar as bandeiras nas fronteiras. Voltávamos à casa de partida, para preparar novos autos de fé continentais.

Para termos paz no futuro, temos ainda de resolver a quadratura seguinte, que é a de como manter uma moeda comum sem política fiscal comum. O tabu alemão que Merkel quebrou, abre caminho à solução. A parede ruiu quando já praticamente todos tinham perdido a esperança e considerado que o projecto europeu estava condenado. Claro que falta ainda fazer a estrada, mas o caminho está aberto. O que aconteceu na segunda-feira 18 de Maio de 2020 é um marco que a História vai registar. Um momento Hamilton, como disse Anatole Kaletsky, para encontrar o paralelo com 1790, quando Hamilton e Thomas Jefferson decidiram que a Federação dos Estados Unidos deveria assumir a divida dos Estados. Não o tivessem feito e a História teria sido muito diferente.

Quem acredita que a Europa é essencial para os nossos filhos e netos tem agora um momento de paz interior, para melhor encarar as dificuldades imediatas da covid-19. 

Artigo em conformidade com o antigo Acordo Ortográfico

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