Opinião
Entradas em espécie na constituição de sociedades
Uma das formas de realizar o capital de uma sociedade é através de entradas em espécie. Esta pode ser uma maneira de os sócios obterem a desejada participação no capital sem despenderem dinheiro vivo, usando somente bens ou direitos que já possuam.
Para a sociedade pode ser uma forma de adquirir imediatamente os bens que necessita, sem passar por um processo subsequente de compra.
Todavia, estas operações não deixam de ter alguns constrangimentos, que podem determinar que esta possibilidade de realizar o capital não seja tão atrativa quanto poderia parecer numa primeira análise.
Um desses constrangimentos é que tais entradas requerem a intervenção de um revisor oficial de contas, que deve elaborar um relatório desses bens ou direitos, não só descrevendo e identificando os seus titulares, mas também procedendo à sua avaliação para se determinar se os valores encontrados atingem, ou não, o valor nominal da parte de capital que o sócio deve realizar. Obviamente, teremos aqui um encargo adicional com a constituição da sociedade, que está diretamente ligado à forma das entradas de capital.
Se tais entradas foram realizadas através da entrega de bens imóveis, ainda existe sujeição a imposto municipal sobre as transações onerosas de imóveis (IMT). Tal como o nome indica, este imposto apenas incide sobre operações onerosas sobre imóveis que impliquem a transferência do direito de propriedade ou de figuras parcelares desse direito. Pela entrega do imóvel pelo sócio, há uma transferência de propriedade do imóvel para a nova entidade jurídica – a sociedade.
O Código do IMT prevê especificamente estas operações no seu artigo 2.º. Porém, mesmo que tal não sucedesse, não há dúvida do caráter oneroso de tal operação, na medida em que os sócios, ao realizarem tais entradas, terão como objetivo obter contraprestações: a remuneração desse capital investido, sob a forma de lucros e ainda a partilha dos valores e bens remanescentes, no caso de liquidação da sociedade.
Contudo, podemos encarar esta sujeição a IMT como inevitável ainda que as entradas fossem realizadas em dinheiro, pois a sociedade para adquirir tais imóveis, posteriormente à sua constituição, com tais valores monetários também teria de suportar IMT como adquirente.
A decisão de realizar o capital de uma sociedade em bens e outros direitos tem, atualmente, outro óbice a ponderar: o afastamento do benefício fiscal relativo à remuneração convencional do capital, pois este apenas abarca as entradas em dinheiro. Em traços largos, tal benefício permite a dedução, na determinação do lucro tributável da sociedade, de uma importância correspondente a cinco por cento do montante das entradas em dinheiro realizadas pelos sócios que devem ser exclusivamente pessoas singulares ou sociedades de capital de risco ou investidores de capital de risco. É necessário ainda que a sociedade beneficiária seja qualificada como micro, pequena ou média empresa. A ter em atenção, todavia, as limitações à usufruição deste benefício: a inserção deste benefício das regras de "minimis" e ainda o limite à redução da taxa efetiva de tributação por utilização de benefícios fiscais materializado no art.º 92.º do Código do IRC.
Apesar de poderem implicar um acréscimo de custos, as entradas em espécie ainda são uma alternativa que podem ter vantagens (fiscais e outras) por si só. Por exemplo, quando um empresário em nome individual ou um profissional liberal pretende transformar a forma de exercício da sua atividade e assumir a forma societária, a constituição da nova sociedade utilizando todo o seu património afeto à atividade individual (para a realização do capital) é a única forma de beneficiar de um regime de neutralidade fiscal.
Quando se cessa uma atividade empresarial ou profissional desenvolvida por uma pessoa singular, o património afeto terá de ser alienado ou afeto à esfera particular do singular, o que determina o apuramento de rendimentos por essas operações de venda ou afetação e consequente sujeição a IRS. Porém, verificadas as condições previstas no art.º 38.º do Código do IRS e do art.º 86.º do Código do IRC, em tais operações aplica-se o regime de neutralidade fiscal, não havendo lugar ao apuramento de qualquer resultado tributável em IRS. Na prática, tudo se passa como se o exercício da atividade sob a forma de sociedade fosse uma continuação da atividade antes desenvolvida em nome individual, não impedindo, todavia, a entrada de outros sócios.
Outro dos casos que podem originar entradas em espécie são os patrimónios empresariais obtidos em herança, em contitularidade, ou não, com outros herdeiros. A vocação de tais patrimónios obtidos para o exercício de uma atividade produtiva, os custos inerentes à sua liquidação para tornar possível a entrada em dinheiro são alguns fatores a ponderar, quando se pretende definir a forma como serão feitas as entradas para a sociedade a constituir.
São várias as situações que podem determinar que a realização do capital (ainda que parcialmente) de uma dada sociedade seja feita em bens ou direitos, mas quando existe a alternativa de recorrer a entradas em dinheiro, pode valer a pena ponderar o custo e os constrangimentos destes dois cenários.
Consultora da OTOC
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