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20 de Dezembro de 2013 às 00:01

Conhece o teu inimigo

Para Portugal, a aproximação das negociações sobre o nosso destino pós-Troika exige uma enorme sagacidade diplomática que certamente passa por "conhecer o inimigo", na melhor tradição de Madiba.

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O vasto legado intelectual de Nelson Mandela tem a sua mais reluzente pérola na sublimação do princípio de estratégia militar: "conhece o teu inimigo". Ao contrário do uso bélico postulado por Sun Tzu em "A Arte da Guerra", Mandela mostrou que este preceito pode ser um poderoso instrumento na promoção da paz, capaz mesmo de unificar uma nação dilacerada por um ódio visceral. Vem isto a propósito da ameaça de regressão que impende sobre o projeto de integração europeia resultante do fosso que se vai cavando entre os países que melhor reagiram à crise financeira e aqueles que a ela sucumbiram. Ainda mais porque as escaras abertas pelos dramas económicos e sociais estão a fomentar o regresso a um passado de desconfiança e recriminação que a Europa logrou manter hermeticamente encerrado ao longo das últimas décadas. Qual a causa deste mal-estar entre os outrora entusiásticos parceiros do sonho europeu?

Segundo alguns quadrantes de opinião, no cerne da contenda está a acusação de que a Alemanha está a aproveitar as consequências da crise para vexar as economias mais débeis e cristalizar a sua supremacia. Para esta corrente, a estratégia alemã assenta em dois pilares: (i) uma política neo-mercantilista desenhada para dizimar o tecido produtivo da periferia; (ii) uma posição intransigente no que se refere à flexibilização das condições dos resgates dos países sobre assistência financeira.

Ignorando as absurdas - mas infelizmente recorrentes - alusões ao Terceiro Reich, importa saber se são justas estas invetivas ou, se pelo contrário, subjazem à conduta germânica fins legítimos. A ideia de que o enfoque da Alemanha nas exportações tem por objetivo promover o emprego doméstico à custa dos seus parceiros comerciais está inquinada por uma deficiente abordagem ao tema. A geração de excedentes externos decorre, por um lado, da competitividade e qualidade singulares da indústria germânica e, por outro, da decisão dos alemães de prescindir do consumo dos bens por eles produzidos a favor dos não-residentes. Se os alemães decidissem comprar mais BMW, as exportações cairiam mas o consumo aumentaria, o que não afetaria o produto ou emprego da Alemanha, nem tão pouco resolveria os verdadeiros problemas da periferia. Para tal seria necessário obrigar as famílias alemãs a comprar casas no Sul de Espanha e nos subúrbios de Dublin ou a assistir a partidas de futebol nos estádios portugueses. A falta de coerência do argumento neo-mercantilista torna-se bem patente quando constatamos a extraordinária recuperação das exportações dos países periféricos e o reequilíbrio das respetivas contas externas que se deu após a eclosão da crise da dívida europeia. O facto de a Alemanha ter conseguido compensar o colapso da procura dos vizinhos europeus fazendo rumar as suas exportações para paragens mais longínquas, como a China, é um testemunho da robustez do seu modelo de negócio, que devemos admirar e não invetivar.

A verdadeira razão pela qual a Alemanha insiste nos excedentes comerciais é simples: saudáveis hábitos de poupança num país com uma das mais adversas dinâmicas demográficas da Europa e um estado social – de que nenhum governo europeu quer abdicar – difícil de financiar no futuro. Esta necessidade de acumulação de poupança é também relevante para explicar a acusação de inflexibilidade na condicionalidade aos países sob assistência financeira. Como qualquer credor, os alemães querem garantir que as poupanças aplicadas nos resgates dos seus parceiros não se esfumam nos vórtices recessivos da periferia. Pode ser uma visão demasiado materialista para alguns, mas dificilmente se poderá apelidar de ilegítima.

Num contexto em que todos apregoam a necessidade de aprofundar o processo de integração europeia torna-se fundamental discernir de forma desapaixonada as motivações da Alemanha e dos países que partilham a sua peculiar leitura dos desafios. Porque sem eles não há Europa.

Para Portugal, a aproximação das negociações sobre o nosso destino pós-Troika exige uma enorme sagacidade diplomática que certamente passa por "conhecer o inimigo", na melhor tradição de Madiba.

Chief economist do Millenniumbcp

Este artigo de opinião foi redigido em conformidade com o novo Acordo Ortográfico.

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