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As concentrações no contexto COVID19 e a AdC – salvar empresas insolventes

Muito se tem escrito sobre o impacto desta pandemia em termos do enforcement do direito da concorrência. Cremos que não se deve entender que a atual crise exige uma mudança de paradigma na aplicação das regras da concorrência, inclusive no que respeita à "defesa da empresa insolvente".

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O recente surto do coronavírus COVID-19 evoluiu rapidamente de um problema local para uma autêntica crise global. Para além da trágica perda humana, a pandemia está a causar um profundo impacto económico e financeiro.


As repercussões do COVID-19 permanecem com contornos ainda incertos, todavia é expectável que, no rescaldo da crise, se registe um substancial aumento na atividade de M&A. Antecipa-se que a iminente insolvência de muitos negócios espolete um novo contexto em que empresas melhor posicionadas, com acesso privilegiado ao financiamento, procurem concretizar a oportunidade de adquirir as operações comerciais de concorrentes em dificuldades.


Se a proposta aquisição ocorrer num mercado caracterizado por um reduzido número de operadores concorrentes e com difícil penetração existirá uma probabilidade razoável de a autoridade da concorrência competente decidir que a respetiva análise deva ser efetuada no âmbito de uma investigação aprofundada, em virtude da perspetiva realista de a transação poder acarretar uma diminuição substancial da concorrência nos mercados afetados. Existirá também a forte possibilidade de a transação ser proibida.


Nestes casos, as partes envolvidas poderão equacionar fazer uso da chamada "defesa da empresa insolvente", que permite às autoridades da concorrência concluírem pela conformidade da transação caso o target se encontre "insolvente". O argumento da "empresa insolvente" consiste, em suma, em invocar que, independentemente das preocupações de natureza concorrencial suscitadas pela transação, a única alternativa à sua conclusão é a falência do negócio-alvo, e que esta representa um prejuízo maior à concorrência do que a aquisição proposta.


O sucesso desta defesa depende da verificação, em concreto, de três condições cumulativas: i) a elevada probabilidade de a empresa alegadamente insolvente vir a ser excluída do mercado, num futuro próximo, devido a dificuldades financeiras, caso não seja adquirida por outra empresa; ii) não existir qualquer aquisição alternativa que acarrete menos distorções da concorrência do que a operação proposta; iii) que, na ausência da transação, os ativos da empresa insolvente abandonem o mercado.


A aplicação da defesa da empresa insolvente é um tema complexo, com diferentes ramificações jurídicas, económicas e sociais. Na análise destas transações, as autoridades da concorrência são confrontadas com a necessidade de alcançar um trade-off entre, por um lado, os efeitos anticoncorrenciais potencialmente resultantes da operação e, por outro, os benefícios sociais decorrentes de avalizar uma transação envolvendo um operador em risco de colapso iminente.


Muito se tem escrito sobre o impacto desta pandemia em termos do enforcement do direito da concorrência. Cremos que não se deve entender que a atual crise exige uma mudança de paradigma na aplicação das regras da concorrência, inclusive no que respeita à "defesa da empresa insolvente".


É certo que, contrariamente à crise de 2008, de progressão mais gradual e com contornos sistémicos macroeconómicos, o contexto Covid-19 acarretou efeitos imediatos de bloqueio da economia; que se tem assistido a uma substancial flexibilização das regras relativas aos Auxílios de Estado, e que as autoridades da concorrência ficarão mais permeáveis à necessidade de um maior pragmatismo de atuação. Todavia, os princípios e critérios básicos da análise de uma defesa de "empresa insolvente" são muito objetivados, cedendo uma limitada discricionariedade de apreciação, e suportados por uma prática decisória internacional que, até à data, não tem dado evidência de flexibilizar. A ideologia de concorrência que preside no contexto Covid-19 exibe uma preferência por soluções "solidárias" de escopo abrangente, suportadas pela generalidade dos contribuintes, por intermédio dos mecanismos dos Auxílios de Estado, e não, propriamente, na base de uma consolidação desregrada das estruturas de mercado afetadas e às custas de um universo muito mais restrito de operadores e consumidores (que suportariam os custos inerentes à criação de monopólios/oligopólios).  


Na realidade, cremos que, no atual contexto, o problema não é tanto um de critério e análise substantiva, mas antes de eficiência e celeridade do procedimento administrativo que lhe é subjacente: exige-se da AdC, agora mais do que nunca, perante uma potencial maior afluência de transações propostas em contexto de falência financeira, uma abordagem de flexibilidade que tenha presente a muito apertada janela temporal de que partes dispõem para concluir a transação.

* Advogado Coordenador no departamento de direito da concorrência e da União Europeia da SRS Advogados

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