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17 de Fevereiro de 2014 às 00:01

A lotaria das ideias

Com os pobres sem justiça e sem tribunais, a oposição lembra-se de criar salas VIP para ricos. E o mais irónico nisto tudo é que, segundo o relatório "Doing Business" do Banco Mundial, Portugal é o 24.º país, de entre 189, onde é mais fácil resolver em tribunal uma disputa comercial.

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Governar é ter coragem de fazer ideias. De preferência boas. E que resolvam problemas. Três exemplos recentes.

O país anda excitadíssimo com a lotaria das faturas. No café ou no táxi, a questão já não é pedir ou não, mas saber se a fatura já dá para o sorteio dos carros. Sem comprar cautela, o Governo já ganhou a taluda. A medida tem sido zurzida pelo populismo-snobismo do comentário habitual, ignorante de que a utilização de incentivos ao cumprimento fiscal é uma receita que funciona. Ninguém consegue explicar porque pagamos impostos, é certo. Para uns, é um impulso que vem da alma, de contribuição para um projeto conjunto de sociedade, para outros é o pavor de uma cela sobrelotada. Seja como for, uma política fiscal inteligente joga sempre este jogo psicológico. O problema é que no caso das faturas estamos a falar dos impostos dos outros. A maioria das pessoas sente o dever interior de pagar os seus impostos, mas ninguém gosta de ser o PIDE do IRC e do IVA do senhor do restaurante. Aqui entra a lotaria: a miragem de um carro de luxo é a desculpa ideal para soltarmos o bufo envergonhado - "eu nem queria recibozinho com contribuinte, mas agora isto do sorteio....". E não é um sorteio qualquer. São carros, Senhor. Tivesse o Governo pensado em oferecer bolsas de estudo, ou barras de ouro, em vez de Mercedes, que a coisa não teria um décimo do efeito.

Ao Governo sortudo responde Seguro com um sortido, um sortido de ideias para a Justiça, a prova de que é sempre possível fazer pior política de Justiça. Um dos jokers do baralho é a criação de tribunais especiais para investidores, talvez inspirada nos novos tribunais tailandeses para turistas (abertos 24 horas), ou no recente tribunal iraquiano para os investidores estrangeiros. Uma ideia exótica. É como resolver o problema dos incêndios criando jardins botânicos, em vez de limpar as matas. Dar foro privado a empresas estrangeiras é tratar um tumor benigno com quimioterapia, é matar o paciente de susto. Com os pobres sem justiça e sem tribunais, a oposição lembra-se de criar salas VIP para ricos. E o mais irónico nisto tudo é que, segundo o relatório "Doing Business" do Banco Mundial, Portugal é o 24.º país, de entre 189, onde é mais fácil resolver em tribunal uma disputa comercial. Onde Portugal está mal é noutros indicadores do estudo, sobretudo no que toca à facilidade de obter licenças de construção.

E é precisamente aqui que falta a coragem de boas ideias, derrubando barreiras regulatórias e tornando ágeis e transparentes os procedimentos entre o Estado e as empresas, para atrair e manter o bom investimento. O teste do algodão ao apregoado liberalismo económico do Governo pode já ser feito, nos próximos meses, com a liberalização do jogo on-line, um potencial jackpot fiscal. Com habilidade na gestão dos direitos adquiridos dos casinos e das suas garantias constitucionais, mas sem deles ficar refém, Portugal pode ser um pólo global de um negócio em expansão, de base tecnológica e intrinsecamente exportável. Claro que vai ser necessário limar as arestas de uma lei do jogo desajustada, não ceder à pressão externa para limitar territorialmente as licenças, e prevenir a utilização por menores ou excessiva. Por fim, deve ser afastada a consignação da receita do jogo on-line ao Turismo, ou a qualquer outro enclave orçamental. Tudo isto vai permitir ir buscar receita fiscal nova, limitada apenas pelo número de licenças e pela ambição dos operadores. Na discussão do OE a maioria chumbou a proposta do Governo. Haverá agora coragem para tirar o liberalismo da gaveta? Aceitam-se apostas.

Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Direito, Escola de Lisboa

Este artigo de opinião foi escrito em conformidade com o novo Acordo Ortográfico.

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