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29 de Setembro de 2008 às 13:00

Os cem abrigos de Lisboa

O Eng.º Monteiro trabalhava na Câmara há vinte anos e já tinha ouvido falar das casas à borla. Não ligava muito também diziam que a Deonilde da contabilidade vendia ouros e ele não acreditava. Quando o falatório se tornou ensurdecedor, e todos os dias era mais um e mais outro que também tinha uma casa da Câmara, perguntou à sua chefe o que é que se passava. Afinal, tudo tinha uma explicação.

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Era a CML, Cooperativa Municipal de Lisboa, um modelo habitacional autárquico alternativo, de influência socialista: a edilidade dispunha de uma bolsa de apartamentos e casas, de várias tipologias, para distribuir pelos funcionários e amigos.

Não era o modelo típico soviético, do bairro do funcionário do partido, gigantes Portelas cinzentas, ninhos de clones burocráticos. Também não era o modelo cleptocrático do terceiro mundo, em que os do Partido tinham moradias luxuosas e o resto dormia e morria na sarjeta. Não. Era um modelo misto: alguns funcionários, intelectuais e artistas tinham casas do município. Outros não. E havia casas para todos os gostos: em bairros históricos, em bairros de intelectuais, casas boas, casas menos boas.

Também havia bairros sociais, mas esses eram, como o nome indica, para os pobres. Alguns pobres.

A Cooperativa era eficaz: um processo desburocratizado em que uns pediam e outros davam. Era fácil e rápido. Gente boa lá do serviço, de confiança, que não ia faltar com a renda combinada, nem estragar muito as paredes. E se fosse preciso, a senhoria ia fazendo obras. Era uma espécie de casas de função, mas sem função, nem lei.

Também explicaram ao Eng.º Monteiro que o sistema da Cooperativa Municipal de Lisboa ia ser atacado por calúnia e inveja de muitos. Reaccionarices de quem desconfia do que é novo.

Diriam que Lisboa tem milhares de sem-abrigo, de pobres em casas decrépitas, de jovens casais expulsos para a Bobadela pelas taxas de juro. Demagogias. Calúnias. Mas o Eng.º não percebia bem por que estas casas não eram para esses.

Explicaram-lhe que estava a misturar coisas diferentes. Aquelas casas nunca seriam para os sem-abrigo que, por natureza e pelo nome, não podem ter um abrigo (até lhe disseram que não querem ter abrigo). Nunca seriam para os casais de jovens suburbanos porque senão estes deixariam de ser suburbanos (até lhe disseram que eles gostavam de ser suburbanos e que não apreciam as casas da Câmara em zonas sofisticadas). Era outra lógica. Repetiam-lhe: um modelo de habitação municipal misto, de inspiração socialista. Continuava sem perceber muito bem.

Sempre que chegava a casa e via o vagabundo que dormia na rampa da sua garagem, o Eng.º pensava nas palavras da Ana Sara Brito, lá da Câmara: "cada sem-abrigo tirado da rua é uma vitória".

Há quem devesse ter vergonha dos sem-abrigo, mas tem abrigos sem vergonha.

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