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24 de Julho de 2018 às 18:35

A Europa a um passo do fim?

O Euro nasceu como um projecto incompleto e imperfeito. Mantinha-se, no entanto, a convicção de que o caminho se faz andando e que a bicicleta não cai se se mantiver em movimento.

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Num momento em que, despreocupadamente, se fala na possibilidade ou na inevitabilidade ou, mesmo para alguns, na vantagem em desfazer a construção Europeia e voltar às velhas glórias nacionais, esquecendo estes únicos 70 anos de paz e prosperidade, o estudo da História deveria ser considerado absolutamente prioritário. Prioritário para todas as ocasiões e para todas as idades. Porque embora a História não seja um preditor do Futuro, o conhecimento da História é um poderoso instrumento para a compreensão da natureza Humana e para nos iluminar sobre o caminho que já percorremos. Quando se apela a voltar atrás, fazendo recuar o relógio, supostamente à procura da felicidade e da grandeza perdidas, mais valia que se soubesse do que se fala. Porque o passado pode ser afinal muito diferente da ingénua e romântica idealização que, por facilidade e ignorância, dele se faz.

 

O exemplo hoje mais gritante é o que se passa no Reino Unido. Com o Brexit, foi vendido às pessoas que, a insatisfação e os receios que sentiam, eram resultado do domínio de Bruxelas e que, ao retomar-se o centro de decisão em Londres, toda a comunidade iria redescobrir as glórias do Império perdido. Só que os espíritos simples e ignorantes, dispostos a saltar para o abismo à procura da felicidade desaparecida, desconhecem em que condições geoestratégicas específicas a Inglaterra conseguiu, no século XIX, dominar o mundo, assim como ignoram por que razão a Inglaterra perdeu no século XX, irremediavelmente, o seu fabuloso Império. Mas sobretudo, não sonham o que eram as condições de vida da esmagadora maioria dos ingleses durante o período da Glória Vitoriana. Caso soubessem, teriam certamente ‘arrepios na espinha’.

 

Quanto à nossa Europa, desde o fim do Império Romano que a instabilidade, a insegurança, a violência e a devastação permanentes – provocadas pelos diferentes grupos em constante guerra uns contra os outros para assegurar a sua reserva territorial – povoam a nossa memória de infindáveis páginas negras. Há, no entanto, quem prefira reter unicamente a espuma do "glamour".

 

Dividido o espaço europeu em pequenas guerreiras porções regionais, as comunidades que partilharam o continente acabaram por encontrar no século XVI, pela mão dos herdeiros Portugueses do Infante D. Henrique e de D. João II, uma alternativa à luta fratricida, tendo partido à conquista e partilha do resto do mundo. O que nós Portugueses retirámos desses anos gloriosos, drasticamente comprometidos com o desastre de Alcácer-Quibir, foi uma magra consolação que, apesar de tudo, ainda hoje enriquece a nossa memória colectiva.

 

Espanhóis, Holandeses, Ingleses e Franceses dedicaram-se de corpo e alma nos séculos XVI e seguintes, à aquisição territorial fora do continente europeu. Mas apesar deste alargamento de espaço vital e das extraordinárias fontes de rendimento que resultaram da exploração dos novos continentes, o campeonato pela dominação na Europa continuou sempre em aberto. Franceses contra Ingleses, Ingleses contra Espanhóis, os vários estados alemães e os Suecos contra todos, os Austríacos e Russos de um lado ou de outro. O permanente esforço militar consumiu, ao longo dos últimos séculos, recursos e gerações sem fim. Tivemos a Guerra dos 100 anos, dos 30 anos, dos 7 anos, as guerras Napoleónicas. A Europa viveu sempre aos solavancos, cruzando momentos dedicados à economia da subsistência com a economia da guerra.

 

Com a reunificação alemã do final do século XIX, uma nova força imperial emerge e impõe a sua presença, não só na Europa, mas também no espaço colonial. O domínio das novas tecnologias das máquinas a vapor faz dos Ingleses, Franceses e Alemães, potências económicas que adquirem uma riqueza nunca antes igualada. Por razões ainda hoje difíceis de compreender, estas potências irão autodestruir-se na Grande Guerra de 1914-18. Adquirida a paz em 1918 à custa da intervenção dos Estados Unidos, a incapacidade de organizar a Europa como um espaço comum acabaria por criar as condições da emergência da maior calamidade conhecida até hoje pela Humanidade, que foi a II Guerra Mundial, com tudo o que de indescritível se passou nesses anos terríveis. Impossível esquecer como um grupo de arruaceiros populistas, liderados por Hitler, foi capaz de seduzir todo um povo, por sinal o mais culto e intelectualmente mais sofisticado do mundo, para se lançar numa das maiores selvajarias da História da Humanidade.

 

Após 1945, a urgência absoluta, suportada pela então generosa administração americana, consistiu em criar condições económicas e institucionais para tornar impossível a repetição de 1939 e travar a expansão do novo império soviético. Do lado europeu, políticos e cidadãos de diferentes países lançaram mãos a um desafio julgado impossível, que era o de pouco a pouco, mas sempre em andamento, criar condições para dissolver as fronteiras físicas e mentais e tornar incompreensíveis as guerras na Europa. Franceses e Alemães, conscientes de que só em conjunto, lado a lado, se enterravam os machados da guerra, deram vida, sucessivamente, à Comissão do Carvão e do Aço, à CEE, ao Mercado Único e finalmente ao Euro, passando pela Política Agrícola Comum, Fundos Estruturais, Erasmus e Schengen. O território comum Europeu foi-se aprofundando, e empresas e trabalhadores de todos os Países viram alargados os seus espaços vitais. A Inglaterra acordou tarde para esta nova realidade europeia, mas, feita a prova nos anos 60 da sua inviabilidade como ilha especial, pede e consegue a adesão, suportada depois em referendo.

 

Durante as últimas décadas, os sentimentos nacionais foram sendo moldados – sem desaparecerem – servindo agora, no essencial, para proteger oportunisticamente os Governos da sua própria incompetência, quando explicam os seus insucessos e dificuldades com a dependência a Bruxelas.

 

A criação do Euro foi mais um exercício de grande ambição e risco, só possível pela audácia política de Mitterrand e Khol, assumidos e cúmplices obreiros da sobrevivência europeia. Como em muitas das anteriores iniciativas, o Euro nasceu como um projecto incompleto e imperfeito. Mantinha-se, no entanto, a convicção de que o caminho se faz andando e que a bicicleta não cai se se mantiver em movimento... Só que, desaparecidos Mitterrand e Khol, os burocratas de serviço foram incapazes de um rasgo de visão e liderança para encarar e resolver as deficiências institucionais. Sentaram-se, deslumbrados com o enorme alargamento aos países de leste e entretiveram-se com a regulamentação do tamanho dos ovos e as características das casas-de-banho dos restaurantes.

 

Infelizmente, em 2007, depois de alguns anos a criar crédito em quantidades infinitas e para todos os gostos, Wall Street acabou por explodir, arrastando consigo o sistema financeiro global. Ao contrário das autoridades americanas, que tinham presentes os erros cometidos em 1929 e sabiam o que tinham para fazer, as autoridades europeias foram incapazes de delinear uma resposta concertada. No salve-se quem puder que se seguiu, os Alemães, tendo todas as condições para salvar a mobília, optaram por impedir qualquer solução. Preferiram o reflexo egoísta, fugindo à solidariedade indispensável para um empreendimento comum. Os Países do Sul, estruturalmente frágeis, acabaram por encaixar individualmente o tsunami financeiro, catástrofe de que ainda hoje não recuperaram. O centro e norte da Europa assistiu ao incêndio do quintal dos vizinhos, incomodados com os riscos para o seu próprio jardim.

 

A verdadeira dificuldade é entender porque agiram os Alemães em prejuízo do projecto de união para o qual vinham trabalhando durante décadas e de que são hoje, por mérito próprio, os maiores beneficiários. Mais uma vez, frente a uma crise de grandes dimensões, a liderança alemã foi incapaz de visão responsável. Impossível aqui, não fazer um paralelo com o papel do Kaiser que em 1914, por incompetência, estupidez e absoluta falta de visão, lança a Alemanha numa Guerra total de que a Europa vai sair completamente destruída. A comparação da falta de visão, aplica-se inteiramente à crise de 2007, quando Merkel e Schauble, julgando proteger a sua contabilidade, vão destruir a confiança dos europeus numa entidade que era suposto protegê-los.

 

Os Alemães foram indiferentes ao facto de que se o Euro terminasse e se se regressasse a uma Europa das moedinhas, o seu marco valeria o dobro do que vale hoje e os seus Mercedes e BMW teria um décimo do mercado que actualmente detêm. Não é demais sublinhar que as exportações alemãs representavam 23% do PIB em 1993, enquanto que hoje são 47%. Fácil de ver o que representaria um marco forte. Não tivesse aparecido Mário Draghi, que não possuía outros exércitos que não fossem a sua coragem e determinação e que descobriu forças onde os outros só viam fraquezas, não se teria conseguido fazer parar a espiral de destruição. Se a Europa lhe sobreviver, ganhou direito a estátuas a serem levantadas por este continente fora.

 

Como um desastre nunca vem só, corria ainda a crise americana, que iria fazer ruir o sistema financeiro da Europa do Sul, enterrando as empresas dependentes de crédito para funcionarem, quando surge a crise dos migrantes, com milhões de fugitivos empurrados pelas guerras que os Estados Unidos abriram no médio oriente e simultaneamente, os que fogem da pobreza das regiões africanas, vampirizadas durante décadas pelas ineptas e corruptas lideranças locais. Perante estes movimentos sísmicos globais, mais uma vez a Europa falha por omissão, ao fazer de conta de que seria uma competência nacional enfrentar a invasão da fronteira da União. E lá se foi assobiando para o lado até o Sr. Salvini entrar em cena.

 

Hoje, quando as dúvidas, incertezas e desconfianças paralisam a Europa, é imperativo olhar racionalmente para o sucesso destes únicos 70 anos de paz e prosperidade. Claro que a Europa pode sobreviver, mas para isso suceder tem de (1) urgentemente finalizar o reforço do seu sistema bancário, dando segurança ao financiamento da economia, em especial nos países do Sul, (2) encontrar uma solução para o problema das migrações e (3) instituir mecanismos de redistribuição temporários, que permitam corrigir desequilíbrios ocasionais no funcionamento das economias. Nada disto é novidade e tudo isto está estudado e faz parte, nomeadamente, da agenda Macron. Falta o mais difícil: fazer.

 

É hoje particularmente difícil finalizar estas reformas, a contraciclo com a "American First" de Trump, do Brexit de Farage, da "Italia Primo" de Salvini, da "France d’Abord" dos Le Pen e com a expectativa duma "Deutschland uber alles". Estamos num período militante e vitorioso dos inimigos da Europa, os defensores intransigentes das prioridades nacionais. O verdadeiro drama é que, quando todos estes exércitos de ódio estiverem bem afinados, lá teremos de chamar a nossa padeira de Aljubarrota, para nos lançarmos também na fogueira final.

 

Presidente da APFIPP

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