Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião
14 de Junho de 2021 às 14:30

A maçã de Adão

O que assistimos é à criação e a uma ocupação quase selvagem de tudo quanto é cargo público sem que isso corresponda a uma política de reforma e modernização coerente do Estado.

  • 6
  • ...

Diz a tradição cristã que Adão estava proibido de comer a maçã no Jardim do Éden. Teria sido advertido por Deus que morreria caso comesse o fruto da arvore do conhecimento do bem e do mal. Foi uma serpente que o instigou a fazê-lo e Adão aceitou comer a maçã. Sobreviveu, mas acabou por ser expulso do Jardim do Éden.

Também o Estado português tem este problema do pecado original. Todos querem comer a maçã e poucos são os tementes a Deus. Nada me move contra ou a favor de Pedro Adão e Silva, pessoa que não conheço pessoalmente, mas de quem sei existir uma opinião positiva no plano académico e da análise política pese embora a sua ligação não escondida ao Partido Socialista. O problema da nomeação da última semana não é, portanto, a figura de Adão e Silva. É a forma como aconteceu e o que ela tem de simbólico.

A dignidade de uma nação com tantos anos de história é também feita da comemoração de datas carregadas de simbolismo e da valorização e lembrança dos seus heróis. Também desta forma se contribui para harmonizar a relação entre os cidadãos e a sociedade em geral e garantir que a memória não se perde e chega às gerações vindouras. Tudo isto parece certo e não está obviamente em causa. O que todos sentimos, à exceção de Marcelo e de Costa, é que estamos perante mais um abuso. As últimas décadas estão carregadas de situações em que é evidente a utilização indevida e muitas vezes criminosa de recursos públicos. Não faltam discursos e declarações de intenção dos mais altos magistrados da nação a condenar esse tipo de comportamentos e a afirmar que com eles e a partir de agora essas situações não se repetirão.

O tão proclamado princípio da transparência nos processos de decisão é permanentemente maltratado e ultrapassado pelos factos que não param de nos surpreender. A obsessão que os partidos do sistema demonstram em servir as suas clientelas e garantir a sobrevivência das pesadas máquinas que os suportam conduz à ocupação de tudo o que é função pública por esse país fora. Ao nível das freguesias, dos municípios, da administração central, das empresas públicas, das entidades ligadas à proteção civil, aos serviços da segurança social e a tantos outros casos a que a longa mão do Estado consegue chegar. O clientelismo é endémico na sociedade portuguesa. A interdependência e muitas vezes a promiscuidade que existe entre interesses público e privado é conhecida de todos e aceite por muitos. E quando assistimos a troca de acusações entre os dois principais partidos do sistema sobre estes abusos e a usurpação da máquina do Estado em seu próprio benefício, não podemos deixar de sorrir tal a desfaçatez com que o fazem e a falta de memória de que padecem.

O Estado não para de crescer e o número de funcionários tem vindo a aumentar muito nos últimos anos de governação socialista. Se este facto trouxesse consigo melhor qualidade nos serviços públicos, maior diversidade na oferta e na proximidade com os cidadãos, quadros mais qualificados que constituíssem o principal alicerce do exercício do poder feito de competência, de isenção e de rapidez na resposta, até poderíamos compreender a opção. Mas o que assistimos é à criação e a uma ocupação quase selvagem de tudo quanto é cargo público sem que isso corresponda a uma política de reforma e modernização coerente do Estado. Sabemos apenas, e isso é absolutamente certo, que corresponde a mais despesa pública. E também sabemos que esta despesa é sempre paga da mesma forma, isto é, com os nossos impostos. Ou matamos rapidamente a serpente que nos instiga a continuar a comer a maçã ou, ao contrário da lenda, acabaremos mesmo por morrer enquanto nação livre e independente.

Ver comentários
Mais artigos de Opinião
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio