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02 de Julho de 2017 às 18:23

O nosso país tribalizado

O que eu vejo é um Portugal tribalizado, dividido em paróquias e esquemas, em cumplicidades manhosas que por definição estimulam a inércia, atravancam o reconhecimento da qualidade, impedem o desenvolvimento.

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Primeiro o incêndio que nunca mais será lembrado sozinho: matou 64 pessoas, feriu 200, arrasou quase 50 mil hectares de floresta desordenada, expôs a calamidade organizativa que somos como país, as estradas bucólicas com as magníficas copas das árvores que fazem de chapéu de fogo, encurralando, amortalhando quem lá está, apesar de uma lei que o proíbe.

Agora foi o roubo de armas de guerra, um furto risível e obsceno que expôs o frágil sistema de segurança que se anicha, com indolência interna e tolerância pública, bem no coração do Estado. O que virá a seguir depende do azar ou então do mau tempo ou de alguma outra coisa qualquer, o sopro do vento, a astúcia de alguém, o betão envelhecido de uma ponte, um muro que cai de repente, uma estrada que cede, qualquer coisa de súbito que logo classificaremos de inesperado, mas que na realidade não o é - inesperado e súbito não são sinónimos.

Os acidentes acontecem, sim. Ardeu um prédio inteiro em Londres e isso pode servir-nos de macabro alívio de consciência. Se aconteceu em Londres... Descarrilam comboios, acontecem desgraças monumentais pelo mundo fora, não apenas por aqui, neste pedaço atabalhoado de terra. Mas agora que estamos a levantar a cabeça do rigoroso inverno económico, estes dois golpes profundos (digo: abissais) não se limitam a pôr em causa a auto-estima nacional, tão volúvel e efémera com as pontuais vitórias desportivas ou musicais de valor sempre relativo mas de estupendo efeito sedativo. Para um povo que cultiva uma patológica falta de reconhecimento externo que o menoriza em permanência, para uma nação que joga infantilmente ao faz de conta e que se desresponsabiliza culpando sempre apenas os políticos - eles, eles... nunca somos nós, nós os que os elegemos --, estes dois acontecimentos recentes deveriam forçar-nos a pensar.

O que eu vejo é um Portugal tribalizado, dividido em paróquias e esquemas, em cumplicidades manhosas que por definição estimulam a inércia, atravancam o reconhecimento da qualidade, impedem o desenvolvimento. O nosso Estado é o fruto podre desta capacidade de agir em comunidade, mas a doença é geral, infecta também os privados, as empresas pequenas, médias e grandes, embora em menor grau por causa de exposição, ainda que relativa, à pressão do mercado. Os processos de decisão no nosso país são, em regra, um verdadeiro SIRESP, comunicações falhadas, egos à solta que capturam o interesse geral em benefício próprio.

No Estado é mais grave porque o bem comum deveria ser prioritário, mas também porque décadas de compadrio e uma lei abstrusa desvitalizam o esforço e protegem quem controla a máquina. Na verdade, podem cair ministros, podemos defenestrar militares, mas o que importa isso se nada de estrutural muda? Elevamos as demissões à quintessência da maturidade democrática, quando na verdade esse é apenas o último apeadeiro, a derradeira saída quando pouco mais há fazer, os mortos estão mortos, e o sistema, para sobreviver, auto-desculpabiliza-se através desse suspiro de dignidade pessoal que nada altera - apenas satisfaz o voraz apetite do instante.

Dois peixes novitos vão a nadar e, por acaso, cruzam-se com um peixe mais velho, a nadar na direcção oposta, que os cumprimenta com um aceno de cabeça e diz: "Bom-dia, rapazes. Que tal a água?" Os dois peixes novitos continuam a nadar e, por fim, há um que olha para o outro e pergunta: "Que raio é a água?" David Foster Wallace, o autor desta parábola, conclui que as realidades mais omnipresentes e importantes são, tantas vezes, as mais difíceis de ver e de discutir. É este absurdo que me inquieta. António Costa pode regurgitar relatórios, mas neste lodaçal terá de fazer muito mais. Aspira ele a tanto ou basta-lhe sobreviver?

Este artigo está em conformidade com o novo acordo ortográfico
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