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14 de Maio de 2017 às 19:40

O bom regresso de Varoufakis

Vinte e sete anos depois do fim da II Guerra Mundial, em pleno Pacífico, na ilha de Guam, foi descoberto um soldado japonês que vivia uma situação extraordinária.

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Longe de tudo e de todos, plantado e escondido no meio do oceano, ele estava convencido que o conflito ainda não terminara. O passar do tempo é assim, é um conceito relativo. Para uma pessoa, 27 anos é um longo período de tempo, mais de um terço de uma vida. Para uma guerra é uma eternidade, embora algumas até durem mais tempo, quando são geograficamente circunscritas, não-planetárias, menos mortíferas - numa base diária, sem contar tudo o que ficou para trás - ou então longínquas, no fim do mundo.

Na realidade, há guerras e guerras. Guerras com soldados e bombas, caças e porta-aviões. Conflitos convencionais que também se podem arrastar, como no Afeganistão, no Iraque, na Síria ou na Colômbia. Apesar da chacina, apesar do medo que geram no quotidiano, a regra é que elas acabem por sair do radar das notícias e, portanto, do nosso interesse. A morte banaliza-se, fica invisível, não comove nem indigna, por mais cruel que ela seja. Interessa-nos ainda um pouco a Síria porque essa vizinhança despeja refugiados e perigo na Europa - se não fosse isso, seria como o Iraque, um buraco que obliterámos há muito da consciência.

E a Grécia, como é, como está quase dez anos depois do início da Grande Recessão? Não está em guerra civil, não contabilizamos mortos e feridos, e no entanto a catástrofe social e económica, o desmando financeiro e ético entra (poderia entrar) pelos olhos dentro... de quem quer ver. Na verdade, a Grécia é hoje apenas o canário da mina. Serve de aviso de que a tempestade pode chegar outra vez ao euro e que se isso acontecer os raios e os trovões atingirão sem clemência os países mais fracos, com Portugal à cabeça, repetindo o efeito dominó que nos levou ao resgate financeiro em 2011 e ao conforto enganador que vivemos hoje. Basta olhar para a nossa dívida pública (130% do PIB) para compreender que se os mercados voltarem a fechar-se com medo da bancarrota, exigindo um novo resgate de 79 mil milhões de euros, isso atiraria Portugal para o lado da Grécia.

A Grécia. A Grécia não existe como país, como país normal, isto é, nação feita por pessoas e aspirações. Vamos conhecendo com algum tédio os indicadores económicos - crescimento previsto de 2,7% este ano -, somos postos ao corrente da queda de popularidade do Syriza nas sondagens, mas os números não contam a história e menos ainda dão carne e osso à realidade. Um país que perdeu mais de um quinto do PIB e que tem um desemprego real muito acima dos 30%, onde metade dos jovens vegeta e não tem com sair deste beco, exceto se fugir, não pode ser visto como uma história resolvida.

Eu ando a ler o último livro de Yanis Varoufakis, acabado de sair do prelo, onde ele conta a desventura que foi a sua passagem como ministro das Finanças. É uma leitura trepidante e informativa. Sobre Varoufakis, eu já oscilei muito, já o julguei um perigo público, um egocêntrico desalmado, inteligente e sedutor, um risco para a Grécia e para a moeda única. Hoje, mais friamente, partilho com ele uma parte generosa do diagnóstico sobre o euro - foi ele o primeiro e único político a denunciar a farsa democrática que é o Eurogrupo -, deixando ele bem claro que o jogo do "emprestar e fazer de conta", a estratégia demolidora e gelada de Berlim, iria condenar o seu país a uma lastimável perda de dignidade. A Grécia converteu-se num país sem-abrigo - existe, aliás, vegeta, mas não o vemos. A desgraça está lá, é uma espécie de paisagem que nos perturba e nos recorda o que nos pode ainda acontecer. Mas fazemos de conta que não. Atiramos uma moeda e seguimos em frente. Há dez anos.


Este artigo está em conformidade com o novo acordo ortográfico
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