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Reportagem: Como a falta de dois deputados inviabilizou uma comissão de inquérito

Primeiro, veio a aprovação. "Creio que terá incorrido num erro". Depois, veio o chumbo. Seguiu-se o debate. Ficou a rejeição do corpo do relatório. Acabou assim uma comissão de inquérito. Sem conclusões. Mas o dia tem história.

Miguel Baltazar
19 de Julho de 2017 às 15:00
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"As forças do bem unem-se sempre". O aparte é dito na bancada social-democrata quando os deputados do PS, BE e PCP estão fora da sala 6. No corredor, os partidos de esquerda discutem o que fazer. Dentro da sala, as risadas social-democratas fazem-se sentir. A cartada política do PSD acabara de criar um imbróglio que ameaça chumbar o relatório da comissão de inquérito à Caixa Geral de Depósitos, da autoria de um deputado socialista e que conta com acrescentos feitos por comunistas e bloquistas.

 

O final da tarde, naquela mesma sala onde decorreram as audições do elogiado inquérito parlamentar ao Banco Espírito Santo já lá vão mais de dois anos, está a ser animado. Já se vai na segunda interrupção dos trabalhos. Foi o PS que a pediu. Tudo porque a votação feita minutos antes não aprovou o relatório final redigido pelo socialista Carlos Pereira. Apesar de uma primeira indicação em contrário.

A aprovação e a rejeição

 

"Os capítulos 1, 2, 3, 4, 5 e 6 do relatório foram aprovados com os votos contra do PSD e do CDS e os votos favoráveis do PS, do PCP e do BE". Emídio Guerreiro, deputado social-democrata que preside à comissão, fez o anúncio.

 

Hugo Soares, coordenador do PSD, anuncia que quer falar. "O Sr. deputado Hugo Soares pede a palavra para que efeito?".

 

"Creio que terá incorrido num erro. [Quero falar] para [fazer] uma interpelação à mesa", responde o social-democrata, candidato a líder da bancada parlamentar. 

 

"Corrija-me, então", aceita Emídio Guerreiro.

 

"A lei dos inquéritos parlamentares é muito clara", atirou Hugo Soares enquanto esfrega as mãos. Cruza-as. Remete para o regime jurídico dos inquéritos parlamentares, em que é dito que o relatório final de uma comissão de inquérito deve conter "o sentido de voto de cada membro da comissão, assim como as declarações de voto escritas".

 

"Contando os deputados presentes na sala, não me parece que o relatório tenha sido aprovado", diz Hugo Soares. Emídio Guerreiro sorri antes de voltar a falar. A leitura da lei é que a votação é uninominal, cada deputado vota por si, e não em representatividade, ou seja, pela bancada. E de acordo com o deputado social-democrata, o relatório não conseguiu, com a votação por cabeça, a aprovação.

 

O artigo 20.º

 

Sete deputados do PSD e CDS votaram contra aqueles seis capítulos do relatório, todos levantando a mão para mostrar a sua posição. É nesta parte do relatório que é feito o relato da iniciativa parlamentar e onde constam as conclusões. Sete deputados do PS, BE e PCP votaram a favor.

 

Depois das palavras de Hugo Soares, o burburinho na sala intensifica-se. Hugo Soares levanta-se e mexe no blazer, sorridente. Os deputados socialistas vão mexendo nos telemóveis e computadores. Conferenciavam entre si, com as garrafas de água pela frente. O fastio que se esperava no início de uma reunião em que se antecipava a aprovação do relatório pela esquerda e sem problemas desapareceu.

 

"Se calhar ajudará a todos a leitura do artigo 20.º", chega a dizer Emídio Guerreiro.

O relatório final refere, obrigatoriamente:
a) O questionário, se o houver;
b) As diligências efectuadas pela comissão;
c) As conclusões do inquérito e os respectivos fundamentos;
d) O sentido de voto de cada membro da comissão, assim como as declarações de voto escritas.
Regime jurídico dos inquéritos parlamentares

Só foram votados os seis primeiros capítulos porque o PCP o pedira – queria votar em separado o capítulo 7, o das recomendações deixadas pela comissão. E dentro das recomendações queria votar em separado a recomendação número 1: "manutenção da CGD nas mãos do Estado" (Mais à frente perceber-se-ia porquê). 


A chegada dos deputados

O arranque dos trabalhos, a 5 de Julho de 2016
O arranque dos trabalhos, a 5 de Julho de 2016 Bruno Simão



Após a declaração de Hugo Soares sobre os votos uninominais, foram chegando os deputados em falta. Susana Amador, uma das deputadas efectivas que não votou, entra na sala. Luís Testa, suplente, também. João Galamba, o porta-voz socialista e segundo deputado efectivo que faltara à votação, é o último a surgir. Vêm calados. Sentam-se. Permanecem em silêncio.

 

Os parlamentares vão falando e saindo para discutir o que se passa no inquérito - o último dos episódios polémicos na comissão que tomou posse a 5 de Julho de 2016. É aqui que se juntam lá fora alguns deputados. Os assessores não largam os telefones. Vão havendo risos à direita. "Vamos pedir a suspensão dos trabalhos até Setembro. Em Setembro, cá estaremos para discutir o resto que falta", ironiza Hugo Soares, esperando que nessa altura já houvesse decisão definitiva sobre os documentos que CGD, Banco de Portugal e CMVM não querem entregar aos deputados. Não é o que acontece.

 

Após longos minutos de espera, os deputados sentam-se e avançam para a votação das recomendações. A votação dos capítulos 1 a 6 fica como está. A esquerda não obrigou a novos votos – nem houve uma acesa discussão parlamentar que caracterizou esta comissão de inquérito. Uma iniciativa parlamentar que, aliás, fora marcada sempre por uma grande discussão entre a esquerda e a direita, e que levou mesmo à demissão do primeiro presidente da comissão, o social-democrata Matos Correia.

 

Apesar da autoria de um deputado socialista, com a cartada do PSD, o PS não se compromete com o relatório em que é dito que "não é possível concluir que não tenham existido pressões externas para aprovação de créditos a projectos específicos" quando estão a decorrer investigações judiciais que apontam em sentido inverso. Tanto na Operação Marquês como na investigação a uma alegada gestão danosa da CGD há dúvidas sobre a forma como foram concedidos financiamentos no banco público. E ainda há uma auditoria a ser feita pela EY.

 

O relatório fica sem conclusões por conta de uma votação que costuma ser sempre igual nos inquéritos parlamentares: cada deputado vale por si e não pela bancada. Foi-o pela mão do PSD. Mas, à esquerda, nenhum partido fica comprometido com o relatório. Apenas com as recomendações.

 

Os 29 minutos

 

Os 29 minutos que Carlos Pereira gastou, no início da reunião, a explicar o relatório e as conclusões não foram suficientes para a aprovação do corpo do documento. Não houve conclusões na comissão de inquérito. Apenas mereceram aprovação parlamentar cinco das sete recomendações que o relatório deixa – e, aí, foram apenas passados três minutos da intervenção inicial do relator.

 

A primeira recomendação é a da manutenção da Caixa nas mãos do Estado. Foi aquela que o PCP quis votar em separado. Miguel Tiago pretendia ver como votaria o PSD naquele diploma. Afinal, foi uma comissão de inquérito em que a esquerda foi dizendo que os social-democratas queriam privatizar a CGD. Hugo Soares já tinha dito que iria votar contra todas as alíneas do relatório. E assim faz. É o único partido a votar contra aquela recomendação.

 

Duas das sete recomendações são chumbadas. A da criação do mecanismo do malparado e uma outra que pedia uma atenção especial à forma como é imposta a regulação no sistema financeiro nacional. Aqui, já todos os deputados estavam presentes e a votar (incluindo os socialistas). 

 

As regras de votação uninominal e a falta de dois deputados do PS acabam por ditar, mesmo, o chumbo do relatório da comissão de inquérito. Apesar disso, nem sempre os braços de todos os deputados se levantaram para mostrar o seu voto nesta terça-feira. Logo no início, quando foram votadas as propostas de alteração do PCP e do BE que não tinham sido integradas no relatório, o PSD votou sempre contra, mas nem todos os deputados se pronunciaram. Alguns continuavam a escrever nos seus computadores.

 

Findas as votações, houve mais palavras. A última coube a Emídio Guerreiro. Ideia geral: a comissão de inquérito foi prejudicada pelas objecções feitas por entidades externas ao Parlamento, em especial as entidades que não entregaram os documentos pedidos. "No fim de tudo isto, quem não sai beneficiado é a imagem do Parlamento e dos parlamentares".

 

A última das recomendações

 

Aliás, a última recomendação aprovada foi a revisão do regime jurídico das comissões parlamentares de inquérito. "A credibilidade das comissões de inquérito pressupõe seriedade na sua estatuição, no apuramento de factos e na disposição das conclusões para que a repercussão dos trabalhos cumpra o propósito do inquérito e efective o compromisso parlamentar".

 

"A confiança nas comissões parlamentares de inquérito consubstancia-se na isenção e na idoneidade e implica uma conjuntura institucional que ultrapasse a conflitualidade política e as pense na estrita realização da sua função, o cumprimento da Constituição e das leis e a apreciação dos actos do Governo e da Administração".

 

"Senhoras e senhores deputados, foi um prazer, muito obrigado e até amanhã". Os deputados levantam-se. Desta vez, não para discutir algo fora da sala 6. A reunião acabou. O inquérito à Caixa findou. Sem conclusões.

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