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O Reino Unido pediu o divórcio. E agora?
Mercados em pânico, empresas a pensar sair, demissão de Cameron, possivelmente mais referendos na Europa, projecto europeu tremido, talvez o fim de um país e a vitória de Trump nos EUA. A onda de choque do Brexit está a chegar.
"Separação trágica", escreve a Economist. "O divórcio mais complicado do mundo vai começar", acrescenta o Financial Times, que dá destaque esta manhã para um gráfico com uma linha em queda vertiginosa: a da cotação da libra, que regista a maior desvalorização em 30 anos, e a do euro, que sofre o maior recuo de sempre, também face ao dólar.
É a segunda vez que os britânicos fazem um referendo sobre a Europa. A primeira foi em 1975, escassos dois anos após a adesão. Ganhou então "sim", com 67%, e a integração europeia seguiu o seu trilho, com o Reino Unido sempre com um pé de fora. Desta vez foi diferente: o "não" venceu, ainda que com escassa vantagem: 52% contra 48%.
Como esperado, a reacção mais imediata e severa está a ter lugar nos mercados financeiros, com impactos acentuados nos activos de maior risco - como a dívida portuguesa cujos "juros" registam o maior agravamento desde a demissão "irrevogável" de Paulo Portas - , e a incerteza sobre qual poderá ser o novo quadro jurídico com o resto da UE pode levar várias empresas e bancos a reduzir a sua presença e a deslocalizar parte da sua actividade para países da em breve UE-27.
Numa nota enviada aos seus clientes nesta semana, o HSBC, o maior banco do mundo com sede na City londrina, antecipava que, em resultado do "Brexit", a taxa de crescimento será 1% a 1,5% mais baixa em 2017 do que em caso de "Bremain", que a libra desvalorizará até 15% face ao dólar e que, em resultado de uma moeda mais fraca que torna mais caras as importações, se assista a uma subida da taxa de inflação de 3% a 4,5%.
O HSBC antecipava ainda a demissão do primeiro-ministro David Cameron, confirmada hoje pelo próprio, e um Partido Conservador mergulhado numa crise interna profunda, rachado pelas clivagens em torno da Europa, não obstante ter há pouco mais de um ano obtido nas urnas a primeira maioria em 23 anos. Os governos da Irlanda do Norte e Escócia já deram, entretanto, sinais de que querem ponderar também a sua independência para se manterem na UE - o "não" à UE pode ser também o princípio do fim do Reino Unido, partido ainda por uma profunda clivagem geracional onde a opção dos mais velhos foi prevalecente.
David Cameron disse na campanha que, se perdesse o referendo, accionaria o artigo 50º do Tratado de Lisboa, no qual está prevista a possibilidade de um Estado-membro sair por sua livre vontade, e que seria ele a dirigir as negociações pós-UE. Agora disse que será o seu sucessor a fazê-lo e que tenciona sair de cena em Outubro. Dar tempo para digerir o que era impensável até há alguns meses parece ser a estratégia.
Com o pedido de divórcio entregue em Bruxelas, nada mudará no imediato. Até que se conclua um acordo de saída, o que pode demorar até dois anos e incluir um novo acordo de co-habitação com a UE (tipo Suíça ou Noruega, por exemplo), o casamento mantém-se, mas o Reino Unido passa a "dormir na sala" - sem direito a voto sobre as decisões que lhe respeitem.
"O membro do Conselho Europeu e do Conselho que representa o Estado-Membro que pretende retirar-se da União não participa nas deliberações nem nas decisões do Conselho Europeu e do Conselho que lhe digam respeito", lê-se no artigo 50. Porque sair ou não da UE é uma escolha soberana dos britânicos, mas não será o Reino Unido a ditar os termos do divórcio deste casamento longo e nunca plenamente assumido em várias áreas.
O facto de Londres ter ficado de fora do euro, de Schengen ou da união bancária - os projectos mais ambiciosos - facilita, e muito. Mas 43 anos depois, um sexto da regulamentação britânica decorre da pertença à UE, e há ainda 12.295 regulamentos comunitários de aplicação directa que cobrem áreas tão diversas como as normas alimentares, emissões poluentes ou exigências aplicáveis à banca, que caducarão com o abandono da União.
E o resto da Europa? A economia pode também sofrer – mas pouco, antecipa o HSBC que estima um corte de duas décimas nas previsões de crescimento do PIB em 2016 e 2017. Em contrapartida, o "contágio político pode ser significativamente mais prejudicial". "No referendo no Reino Unido, os principais argumentos da campanha do ‘Leave’ resumem-se essencialmente a questões sobre a imigração e soberania, que são preocupações de grande parte do eleitorado da União Europeia."
As reacções na Europa sucedem-se. A maioria é de pesar, mas há quem festeje, como Marine Le Pen, líder da Frente Nacional, que renovou a sua promessa de fazer também um referendo em França pela saída da União se for eleita presidente no próximo ano. Há já petições nesse sentido também na Holanda, na Finlândia e na Suécia. Com a saída do Reino Unido, aumenta a incerteza sobre a sustentabilidade do próprio projecto de integração europeia.
Esta manhã, Donald Tusk, presidente do Conselho Europeu, o órgão que reúne os chefes de Estado dos países da União, tentou serenar os ânimos. Para todos os restantes países, a "União continua a ser o quadro para o nosso futuro comum", assinalou Tusk. Apesar disso, disse estar "perfeitamente consciente" de que esta decisão é "politicamente grave" e até "dramática".
Tusk anunciou que no Conselho Europeu, previamente agendado para a próxima terça e quarta-feira, terá lugar uma reunião paralela e informal dos 27 para discutir o pós-Brexit. Hoje mesmo, estará ainda reunido em Bruxelas com os presidentes das demais instituições europeias, designadamente da Comissão e do Parlamento. "Não há forma de prever as consequências políticas deste evento, especialmente para o Reino Unido. Mas este não é o momento para reacções histéricas. Quero assegurar a todos que estamos preparados para este cenário negativo". "O que não nos mata torna-nos mais fortes", afirmou ainda.
A saída da sua segunda maior economia, membro central da NATO e – last but not least - do país cujo idioma é, de facto, a língua oficial de trabalho e de nenhum outro Estado-membro abre uma caixa de Pandora na UE com consequências muito difíceis de prever. Até porque é muito distinta a interpretação que alguns fazem das consequências de um "Brexit" e das janelas que ele abre ou fecha.
Se entre os que apoiam a saída do Reino Unido estão claramente os que defendem o regresso dos centros de decisão aos Estados-Nação e os que querem pôr travões à globalização, em especial à livre circulação de trabalhadores (não necessariamente à de mercadorias, serviços ou capitais), o facto é que, entre os apoiantes do Brexit, se podem encontrar também os que pensam exactamente o oposto: os que vêem na saída do Reino Unido uma oportunidade de ouro para avançar para uma genuína federação europeia - os verdadeiros federalistas.
Nos meios académicos, há correntes de pensamento assumidas segundo as quais o projecto europeu só pode sobreviver se deixar pelo caminho os que têm estado com um pé dentro e outro fora (caso do Reino Unido, que não é membro do euro, nem de Schengen, nem da união bancária, por exemplo) mas também aqueles, que participando nos projectos mais ambiciosos, se mostram relutantes em cumprir as regras acordadas. Quem fala de núcleo duro, de refundação da UE em torno de "coligações de vontades" tem muitas vezes em mente a necessidade de um processo de "depuração" e a convicção de que a saída da Grécia do euro não é uma questão de "se" mas de "quando", assim como a saída do espaço Schengen e de cooperação judicial e policial dos países de Visegrado, os mais relutantes em receber os muitos milhares de refugiados que continuam a chegar à Europa.
As ondas de choque do "Brexit" poderão ainda chegar ao outro lado do Atlântico. A New Yorker, por exemplo, escrevia ainda ontem que as chances de Donald Trump vencer as presidenciais nos Estados Unidos poderiam ser ampliadas dada a proximidade do discurso entre o candidato republicano e Nigel Farage, líder do UKIP e um dos principais rostos da campanha pela saída da UE. Trump chega hoje a Londres.