Notícia
Esqueçam agora o whisky
Mário Sérgio já era bom nos brancos, nos tintos, nos espumantes e nas destilações. Agora resolveu mostrar que domina como poucos a arte de lotear aguardentes.
12 de Maio de 2018 às 13:00
Visionários tanto são os que criam a partir do nada como aqueles que, teimando na defesa de produtos caídos em desgraça, não mudam um milímetro na trajectória das suas empresas por estarem convencidos de que o tempo lhes dará razão. Se valorizo os primeiros, tenho simpatia romântica pelos segundos porque, contra as modas e os prejuízos à mistura, conseguem mostrar que os nossos antepassados também se governavam pela inteligência. Querem um exemplo no mundo agrícola? Mário Sérgio, da Quinta das Bágeiras (Bairrada).
A modernização do sector vitícola que se iniciou na década de 80 determinou que, primeiro, os vinhos seriam mais doces, macios, cheios de fruta, extraídos e alcoólicos e, segundo, prontos a beber o mais cedo possível. Perante isto, a região que vivia da casta Baga e que, por razões climatéricas e má instalação de vinhas, só era tema de conversa três ou quatro vezes por década, estaria condenada à extinção. Quem iria comprar garrafas de tinto Bairrada para ver o que elas poderiam valer três ou quatro anos após a colheita? Só um nicho de gente de bom gosto que, como se imagina, não sustentaria a região.
Por causa disso, muitos produtores substituíram as vinhas de Baga por outras castas da moda - as tourigas e os syrahs desta vida, na tentativa de produzirem vinhos modernos e prontos a beber. Mas outros, teimosos, não só mantiveram as suas vinhas como plantaram mais Baga e continuaram a fazer os vinhos à moda antiga. Rudes de início, potencialmente deslumbrantes no futuro. Tal teimosia (sintoma endémico na região) deu origem, nos últimos 10 anos, a uma procura por vinhos Bairrada clássicos.
E, nesta matéria, o Quinta das Bágeiras (espumante, branco ou tinto) fica sempre bem à mesa. Por causa do vinho em si e por causa da figura do produtor. Mário Sérgio personifica a figura francesa do vigneron, assume com galhardia as suas ideias, e gosta de partilhar os seus vinhos, as suas histórias, e, claro, a gastronomia da terra, que vai além do leitão superiormente assado pelo mestre Ricardo Nogueira (Mugasa). Aliás, ele e a família têm um rol de pratos lá das redondezas que deixam um crítico gastronómico corado de vergonha. No meu caso, tal ignorância começará a ser reduzida daqui por dias com um apalavrado repasto à base de favas, cozinhado no meio das vinhas, na Fogueira.
Entretanto, destaco hoje esta Aguardente Velhíssima Bágeiras pelo facto de me ter encantado, visto que, dá-se o caso, não sou grande fã da bebida, venha ela de Cognac, Armagnac ou da Lourinhã. Sim, é evidente que volta e meia provo coisas fantásticas pela sua riqueza e suavidade, mas, em matéria de destilados, quando alguém é formatado na escola dos whiskies ou teve a sorte de ser "aluno" de Luís Garcia (Single Malt Club, belos tempos), é um bocadinho difícil entrar no mundo das aguardentes. Têm quase sempre o álcool aos saltos. Um tipo manda um golo e fica com a ideia de que está a desinfectar a garganta, com a posterior sensação de calor a correr do esófago para o estômago.
Ora, esta Velhíssima tem dois predicados que contrariam a minha ideia de aguardente. Vai a caminho dos 30 anos (amaciou com o tempo) e teve, antes de ser engarrafada, um estágio numa velha pipa de vinho do Porto. A primeira vez que provei a aguardente fiquei deslumbrado por causa de umas notas que me pareciam típicas do trabalho que os escoceses chamam de "wood finish", um estágio rápido do whisky em casco diferente daquele onde viveu para lhe dar alguma complexidade de aromas e sabores. Neste caso bairradino, as notas de frutos em passa, figo, laranja confitada e um toque de licor, à mistura com frutos secos, madeiras exóticas e outras coisas virão em grande da pipa de Porto. Na boca tem um equilíbrio fantástico entre força e elegância.
E o que é engraçado é que, durante muito tempo, pensei que esta aguardente só passava pelos pipos de 50 litros. Isto da pipa de Porto só descobri esta semana. Seja como for, convém dizer que a aguardente feita com Maria Gomes, Bical e Baga nasceu no ano em que Mário Sérgio passou a dedicar-se à empresa familiar. Em 1989, encheu vários pipos de 50 litros vindos da mesma tanoaria com a mesma aguardente base. Esta foi evoluindo e - de novo como no mundo do whisky - Mário Sérgio foi registando que alguns pipos davam melhor aguardente do que outros. A dada altura, pegou em cinco deles e despejou-os na tal pipa de Porto.
Quando bebo um trago desta aguardente, não consigo deixar de pensar no tempo que levou até chegar ao meu nariz, no trabalho cuidado de destilação e na alma de alquimistas do Mário, do pai Abel e do Avô Fausto, que muitas alegrias deram e dão a quem gosta de vinhos e aguardentes com identidade. E até me esqueço que existe uma coisa chamada whisky. Por momentos, claro.
A modernização do sector vitícola que se iniciou na década de 80 determinou que, primeiro, os vinhos seriam mais doces, macios, cheios de fruta, extraídos e alcoólicos e, segundo, prontos a beber o mais cedo possível. Perante isto, a região que vivia da casta Baga e que, por razões climatéricas e má instalação de vinhas, só era tema de conversa três ou quatro vezes por década, estaria condenada à extinção. Quem iria comprar garrafas de tinto Bairrada para ver o que elas poderiam valer três ou quatro anos após a colheita? Só um nicho de gente de bom gosto que, como se imagina, não sustentaria a região.
E, nesta matéria, o Quinta das Bágeiras (espumante, branco ou tinto) fica sempre bem à mesa. Por causa do vinho em si e por causa da figura do produtor. Mário Sérgio personifica a figura francesa do vigneron, assume com galhardia as suas ideias, e gosta de partilhar os seus vinhos, as suas histórias, e, claro, a gastronomia da terra, que vai além do leitão superiormente assado pelo mestre Ricardo Nogueira (Mugasa). Aliás, ele e a família têm um rol de pratos lá das redondezas que deixam um crítico gastronómico corado de vergonha. No meu caso, tal ignorância começará a ser reduzida daqui por dias com um apalavrado repasto à base de favas, cozinhado no meio das vinhas, na Fogueira.
Entretanto, destaco hoje esta Aguardente Velhíssima Bágeiras pelo facto de me ter encantado, visto que, dá-se o caso, não sou grande fã da bebida, venha ela de Cognac, Armagnac ou da Lourinhã. Sim, é evidente que volta e meia provo coisas fantásticas pela sua riqueza e suavidade, mas, em matéria de destilados, quando alguém é formatado na escola dos whiskies ou teve a sorte de ser "aluno" de Luís Garcia (Single Malt Club, belos tempos), é um bocadinho difícil entrar no mundo das aguardentes. Têm quase sempre o álcool aos saltos. Um tipo manda um golo e fica com a ideia de que está a desinfectar a garganta, com a posterior sensação de calor a correr do esófago para o estômago.
Ora, esta Velhíssima tem dois predicados que contrariam a minha ideia de aguardente. Vai a caminho dos 30 anos (amaciou com o tempo) e teve, antes de ser engarrafada, um estágio numa velha pipa de vinho do Porto. A primeira vez que provei a aguardente fiquei deslumbrado por causa de umas notas que me pareciam típicas do trabalho que os escoceses chamam de "wood finish", um estágio rápido do whisky em casco diferente daquele onde viveu para lhe dar alguma complexidade de aromas e sabores. Neste caso bairradino, as notas de frutos em passa, figo, laranja confitada e um toque de licor, à mistura com frutos secos, madeiras exóticas e outras coisas virão em grande da pipa de Porto. Na boca tem um equilíbrio fantástico entre força e elegância.
E o que é engraçado é que, durante muito tempo, pensei que esta aguardente só passava pelos pipos de 50 litros. Isto da pipa de Porto só descobri esta semana. Seja como for, convém dizer que a aguardente feita com Maria Gomes, Bical e Baga nasceu no ano em que Mário Sérgio passou a dedicar-se à empresa familiar. Em 1989, encheu vários pipos de 50 litros vindos da mesma tanoaria com a mesma aguardente base. Esta foi evoluindo e - de novo como no mundo do whisky - Mário Sérgio foi registando que alguns pipos davam melhor aguardente do que outros. A dada altura, pegou em cinco deles e despejou-os na tal pipa de Porto.
Quando bebo um trago desta aguardente, não consigo deixar de pensar no tempo que levou até chegar ao meu nariz, no trabalho cuidado de destilação e na alma de alquimistas do Mário, do pai Abel e do Avô Fausto, que muitas alegrias deram e dão a quem gosta de vinhos e aguardentes com identidade. E até me esqueço que existe uma coisa chamada whisky. Por momentos, claro.