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GES: Um "saco azul" que foi dando para cada vez mais mãos

3,2 mil milhões de euros terão passado pelo "saco azul" do Grupo Espírito Santo. Um centro de pagamentos de serviços partilhados, sediado numa "off-shore", mostrou-se uma fonte de remunerações duvidosas. A história está em livro, da autoria de Luís Rosa.

Bruno Simão
24 de Novembro de 2017 às 11:13
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Começou pelos membros do clã Espírito Santo. Passou para os altos funcionários do Banco Espírito Santo e do Grupo Espírito Santo. Depois, saiu da esfera interna e abriu as portas a líderes de empresas participadas. Mesmo assim, chegou para titulares de cargos políticos. Esta é a evolução da comummente conhecida como Espírito Santo Enterprises, ou, por outras palavras, o "saco azul" do GES, segundo o percurso desenhado pelo jornalista do Observador Luís Rosa no livro "A Conspiração dos Poderosos".

"GES terá usado veículo financeiro para pagar despesas extras sem registo dos destinatários." Este era o título de um artigo do jornal Público a 7 de Novembro de 2014, quatro meses depois da queda do BES. Ao longo dos últimos três anos, a equipa liderada pelo procurador da República José Ranito tem tentado escrutinar o papel da ES Enterprises na ascensão e na queda do GES. E o valor que a justiça estimava ter sido movimentado tem-se revelado bem maior.

"Na prática, era um 'saco azul' pelo qual, de acordo com as informações bancárias de 2014, tinham passado cerca de 20 milhões de euros. Hoje, as suspeitas rondam os 3,2 mil milhões de euros". O relato, que consta do livro de Luís Rosa, refere-se a transferências que terão tido lugar entre Outubro de 2006 e Agosto de 2014, que estão na mira do Departamento Central de Investigação e Acção Final (DCIAP), no âmbito dos sete inquéritos agrupados sob o nome Universo Espírito Santo.

Ricardo Salgado, então presidente executivo do BES e apontado por membros da família e por funcionários como o líder de todo o GES, é o protagonista da obra. As 272 páginas escritas por Luís Rosa, jornalista há 18 anos da área de justiça e que começou a cobrir o BES e o GES em 2011, vão sendo alimentadas pelas respostas aos interrogatórios a que foi sujeito nos três processos em que Salgado é arguido (Monte Branco, Operação Marquês e Universo Espírito Santo).

"O 'saco azul' do GES terá servido, segundo os dados que consegui confirmar, numa primeira fase, para pagar salários dos próprios administradores, membros da família Espírito Santo que eram administradores do BES e de outras empresas do grupo, para, nas palavras de Ricardo Salgado, não sobrecarregar a folha salarial do BES e da Tranquilidade, quando o GES ganhou a privatização das duas empresas", explica, ao Negócios, Luís Rosa.

Só que o veículo, que teve três nomes (Espírito Santo Financial, Espírito Santo Enterprises e Enterprises Managament Services), abandonou, no início do século XXI, o organograma do GES. A ideia de "serviços partilhados" manteve-se, nas explicações dadas por Salgado e elencadas por Luís Rosa. "Mais tarde, esses pagamentos foram alargados a membros da administração do BES que não eram da família. E, depois, a altos funcionários do BES e do GES", continua o autor. No caso da instituição financeira, estavam em causa funcionários do departamento financeiro, estudos e mercados, como a sua directora, Isabel Almeida, que chegou a ser proposta para administradora, ainda que nunca tenha ocupado o cargo.

O DCIAP desconfia, contudo, que esses pagamentos estarão ligados à montagem e manutenção do esquema de financiamento alegadamente fraudulento, mediante o qual empresas do GES foram financiadas através de recursos de clientes do BES, um dos motivos apontados pelo Banco de Portugal para justificar a medida de resolução aplicada a 3 de Agosto de 2014 e considerada uma das causas da derrocada pelo BES por parte da sua comissão liquidatária.

Luís Rosa escreve que a tese do Ministério Público é que não apenas membros do departamento financeiro, mas também outros trabalhadores que devem assegurar a protecção do banco, como compliance, auditoria interna e risco, foram alvo de recebimentos. Os pagamentos eram feitos sem contratos e por um veículo sediado em "offshore". "Uma prática alargada e comum de pagamentos de salários que poderão ter problemas legais, em termos fiscais". Aliás, a ES Enterprises seria paga através da ESI BVI, uma participada da ESI, que beneficiava ou das emissões de dívida suportadas pelos clientes ou dos dividendos distribuídos pela instituição financeira (que acabaram quando começou a crise financeira).

Mas houve mais: o veículo sediado nas Ilhas Virgens Britânicas terá servido, segundo acredita a justiça e descreve o livro, para pagamentos fora da área do BES. "Depois, [começaram a ser remunerados] os titulares de cargos políticos e membros de órgãos sociais de empresas participadas. Nestes, estão incluídos José Sócrates, Henrique Granadeiro e Zeinal Bava", continua Luís Rosa.

O próprio banqueiro admitiu, em resposta ao procurador José Ranito, a evolução do uso dado ao veículo. "Não lhe vou dizer que a Enterprises só serviu para [pagar] os serviços partilhados. Nesta altura, já tem uma ideia de que não serviu só para isso, mas a origem, o cerne, era esse", responde Salgado quando questionado sobre a origem daquele que é considerado o "saco azul", citado no livro. "Essas pessoas dos quadros do BES deveriam ser remuneradas pelo trabalho que faziam fora - e eram remuneradas por uma empresa que estava dependente da área não financeira do grupo. Agora, pontualmente, houve, de facto, acredito, algumas operações que saíram deste quadro", assume Ricardo Salgado, que era o presidente executivo do BES e um dos líderes dos ramos da família.

Pese embora estas palavras, Luís Rosa assevera, com base nos interrogatórios, que o banqueiro não assume nunca os crimes pelos quais é acusado. Crimes de burla qualificada, falsificação de documentos, falsificação informática, branqueamento, fraude fiscal qualificada e corrupção no sector privado estão a ser averiguados no Universo Espírito Santo. "Ricardo Salgado não assume nunca qualquer responsabilidade sobre nada. Ou há responsabilidade partilhada, em que acha que os restantes membros da família têm responsabilidades semelhantes. [Diz que] quando recebem salários via 'saco azul', recebem o mesmo que ele recebe", comenta o jornalista, com 43 anos, que passou pelo Expresso, Sol e i.

A ideia de uma responsabilidade partilhada não é nova. Em entrevista ao Negócios a 22 de Maio de 2014, quando já havia pressão do Banco de Portugal para que abandonasse a liderança do banco, Salgado quis deixá-la bem clara: "Todos nós cometemos erros"; "Os cinco grupos familiares em torno da ESI, todos nós somos responsáveis". Nessa altura, recusava que tivesse havido enriquecimento ilícito e referia-se apenas à incompetência para justificar a falsificação de contas da ESI, empresa de topo do GES, que tinha sido descoberta. A descoberta do "saco azul" ainda demoraria alguns meses.

Foram 3,2 mil milhões de euros os que terão passado, como relata o livro, pela ES Enterprises, para os quais também contribuíram os conhecidos pagamentos aos ex-presidentes da Portugal Telecom, Granadeiro e Bava, e a José Sócrates, já presentes na acusação que o Ministério Público promoveu na Operação Marquês.

"O que me levou a escrever este livro é, essencialmente, o facto de a ES Enterprises representar um 'modus operandi' do GES e, nomeadamente, da administração do BES liderada por Ricardo Salgado, que me parece muito importante que seja conhecida", justifica Luís Rosa, acrescentando que, além de corroer a democracia, também "leva a uma distorção das regras de mercado em alegado benefício do GES".

Angola é outro dos temas tratados na obra. "Angola é muito importante, não só em relação ao 'saco azul' como ao próprio GES", diz o autor, adiantando que foi "fundamental para dar liquidez" ao grupo. O BES Angola e a Escom eram os principais activos do grupo no mercado angolano, tendo ambos deixado problemas financeiros e reputacionais ao grupo. Aqui, o jornalista defende que Ricardo Salgado não pode partilhar a responsabilidade, já que acredita que saberá quem eram os beneficiários dos alegados créditos irregulares concedidos pelo banco do BESA: "Aplica-se a Angola como se aplica ao 'saco azul'."

Um dos protagonistas em Angola foi Álvaro Sobrinho, que liderava o BESA. Começou por ser aliado de Salgado, passou depois a inimigo e a alvo de acusações. Uma delas é a de que tinha comprado jornais em Portugal, contra a política do grupo, e que os tinha usado para atacá-lo: em 2009, o Sol; depois, o i. Luís Rosa trabalhou no semanário e depois foi director do diário. Recusa qualquer envolvimento do accionista no seu trabalho. "Sempre exerci a minha actividade profissional com total liberdade", diz. "Sou jornalista há 18 anos. Já escrutinei um número significativo de titulares de cargos políticos e públicos, tal como já escrutinei um número significativo de grandes empresas públicas e privadas e os seus administradores. José Sócrates, Isaltino Morais, Mesquita Machado, Dias Loureiro, Zeinal Bava, Henrique Granadeiro, António Mexia, Vale e Azevedo ou Pinto da Costa. São apenas alguns exemplos. Todos foram tratados da mesma forma. Com rigor e exercício do contraditório. Não sei por que razão haveria de escrutinar Ricardo Salgado de forma diferente dos restantes."


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