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Miguel Cadilhe: "O imenso trabalho de Centeno não precisa que lhe façam esta propaganda"

Nos últimos dias, Miguel Cadilhe viu-se envolvido numa guerra de números, que colocou frente-a-frente o valor do défice do ano passado e o de 1989, quando era responsável pela pasta das Finanças e alcançou um saldo de 2,1% do PIB. Por e-mail, aceitou responder às perguntas do Negócios.

Octávio Paiva
31 de Março de 2017 às 12:11
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Foto em cima: Miguel Cadilhe, ministro das Finanças, com José de Oliveira Costa, secretário de Estado dos Assuntos Fiscais (dir.) e José Tavares Moreira, secretário de Estado adjunto do ministro das Finanças (esq.) em 1985. 

Escreveu um livro chamado "O Sobrepeso do Estado em Portugal". Desde a década de 80 até aos nossos dias, continua a identificar um problema de presença excessiva do sector público na economia?

Agravou-se muito. Quer mais prova disso do que o tamanho do endividamento? Agora está acima dos 130% do PIB e o risco da República é classificado muito depreciativamente.

No capítulo sobre boas práticas de finanças públicas, nota que o programa de ajustamento do FMI do qual tínhamos acabado de sair não corrigiu os problemas orçamentais do país. Hoje estamos na mesma situação? Saímos do programa da troika há três anos, mas os problemas de raiz orçamental mantêm-se?
Esse meu texto que cita é originalmente de um livro de 1990 e refere-se aos anos 1986-89. Hoje estamos pior, muito pior diria. A grande reforma do Estado não foi feita. E como não se reformou a despesa, nem as funções, nem os regimes, do Estado, os problemas de raiz orçamental estão lá e estão muito piorados.

No mesmo capítulo, defende uma "ditadura das Finanças" para escapar às finanças da ditadura. O Estado não devia ter défice?
Uma das últimas vezes em que usei esse trocadilho da ditadura foi em 2005. Passados seis anos, veio a troika. Repare, a troika o que foi senão uma ditadura? Foi uma tutela internacional, dura e pouco dignificante, de três anos. Quanto ao défice público, devemos olhar ao estrutural, ao corrigido do ciclo e dos extraordinários, e é para mim claro que o devemos banir, o défice, por muitos anos. Assim o impõe a exorbitante dívida pública. No cenário que usei no livro de 2013, o saldo estrutural melhora gradualmente, passa de negativo para positivo e, a partir de 2020 ou 21, agarra-se aos 0,7% do PIB durante uns 15 anos. Este cenário mais do que cumpre a regra europeia do chamado equilíbrio orçamental, porque me pareceu necessário e seguro. Portanto, a minha resposta é sim, o Estado não devia ter défice. Défice estrutural. Depois há ainda que considerar os saldos primários...

Em 1985, o défice era uma enormidade [...]  As finanças precisavam de ser regradas. Esse foi o principal factor: a gestão e o rigor orçamental.

Quais foram os principais factores que permitiram atingir um défice de 2,1% de 1989?
Em 1985, o défice era uma enormidade, 10,3%, e não estava lá tudo. As finanças precisavam de ser regradas, pois fizemos isso, regrámos a execução orçamental, o défice e a dívida. Esse foi o principal factor: a gestão e o rigor orçamental. Depois, o crescimento da economia ajudou, tínhamos uma estratégia de progresso controlado, era assim denominada. Porém, já no ano de 1989, orientei as políticas macro para arrefecer a conjuntura que era expansionista. Na altura, o ministro tinha as políticas monetária, cambial, orçamental, fiscal, de rendimentos, o que me permitiu um "mix" confluente que procurei fosse anticíclico. Em 1989, fizemos um excedente primário da ordem dos 4% do PIB, cerca do dobro de 2016.

Quais foram as maiores dificuldades que enfrentou no controlo das contas públicas nesse ano?
Que me lembre, a maior dificuldade surgiu na parte final do ano, do lado da despesa. O primeiro-ministro propôs o novo sistema de remunerações dos funcionários públicos, assente em princípios justos e racionais, mas com um elevado potencial de despesa. Preocupados, o ministro das Finanças e o secretário de Estado do Orçamento conseguiram fazer aprovar contrapesos, eram medidas compensatórias, mediante o quê? Mediante mais produtividade e menos outras despesas correntes, medidas estas assentes em auditorias externas independentes à gestão e aos gastos dos diversos serviços. As primeiras auditorias começaram ainda em 1989, com anticorpos, está-se a ver. Saímos ambos em Janeiro de 1990, a novíssima despesa prosseguiu a sua rota em crescendo, mas os contrapesos foram esquecidos, ficaram letra morta em Diário da República. Mais tarde, o jornal Expresso apelidou este episódio como o nascimento do "monstro" e deu-lhe uma paternidade.

Qual foi o papel das alterações de regime fiscal vividas nesse ano para a descida do défice, nomeadamente via IRS? Houve mais receita que antes não existia?
Os efeitos da reforma fiscal não foram só no ano 1989, são permanentes, em todos os anos seguintes, em 2016 também, pois claro. Aliás, podemos mesmo dizer que a eficiência dos novos impostos foi melhorando ano após ano. Portanto, isso não deve relevar na comparação orçamental de 1989 com anos posteriores. Um outro aspecto é a cobrança de impostos antigos de 1988, ocorrida em 1989. A receita não serviu para engordar o orçamento de 1989, porque por minha proposta foi levada ao FEFSS [Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social] então criado e que ainda hoje existe. O IRS e o IRC constituíram uma reforma estrutural, de grande porte, na verdadeira acepção da palavra. Quem me dera ver exemplos reformistas como este na nossa democracia do século XXI, infelizmente são raros, nem os entrevejo.

Quais são as principais diferenças que identifica entre fazer uma consolidação orçamental bem-sucedida em 1989 e em 2016?
Em 2016, há mais, muito mais necessidade de realizar a reforma estrutural do Estado, que é a mais teimosa e grave omissão dos políticos. Aí se viabiliza ou inviabiliza, em grande parte, a verdadeira consolidação das finanças públicas, a qual é muito mais aguda agora do que em 1989. Em 2016, há as regras, os pactos e o tratado orçamental europeus, que os políticos podem alegar nos ajustamentos da política orçamental. Em 1989, não havia um tal contexto ou pretexto. Em 2016, há mais vigilância e aconselhamento, há mais informação em tempo real, há internet e intranet, há por exemplo o independente Conselho das Finanças Públicas, há a UTAO no Parlamento, há um Tribunal de Contas bastante mais reforçado (a reforma é do meu tempo). Em 1989, a equipa das Finanças não dispunha destas valiosas instrumentalidades, complementaridades, fontes de contraste e alertas. Em 2016, há bancos carecidos de capitalização, mas em 1989 havia um extenso sector nacionalizado, também ele a sorver recursos. As privatizações, uma reforma estrutural da responsabilidade do ministro das Finanças, davam então os primeiros passos. Em 2016, o ministro das Finanças está menos apetrechado de políticas para gerir um "mix" em que, porventura, pudesse fazer compensações. Em 1989, esse "mix" era possível e foi usado. Em 2016, a inflação quase zero não permite temperar muita coisa. Em 1989, a inflação estava entre 12 e 13%. Em 2016, não sei qual é a estratégia, em termos continuados e sustentados. Em 1989, vinha aplicando uma estratégia que delineara em 1984. É o que me ocorre, assim em sobrevoo.

[A consolidação] não é sustentável sem a grande reforma do Estado e o crescimento. Lamento dizer que ambas andam mal. 

O mais complicado na consolidação é a sustentabilidade da mesma? Descer o défice e depois mantê-lo num nível baixo. No caso de 1989, o défice de 2,1% do PIB transformou-se em 5% no ano seguinte.
Sustentar uma tendência de sucessiva melhoria do défice, em quatro anos, não é coisa fácil. Ao quinto ano, o desempenho deveria ter continuado, mas partiu-se a tendência e o défice pulou. Pelo ano 1990 já não respondo, nem deixei o terreno minado ao meu sucessor. O dito "monstro" andava em liberdade, sem contrapesos, mas quem os fez cair não fui eu. Só posso dizer que comigo essa derrapagem não aconteceria.

A estratégia de consolidação que está a ser seguida actualmente em Portugal é sustentável?
Não é sustentável sem duas forças principais, a grande reforma do Estado e o crescimento económico. Entre as duas forças há interdependência, julgo eu. Lamento dizer que ambas andam mal.

Sente que a actual campanha de "menor défice da democracia" que está a ser conduzida menoriza o esforço feito em 1989?
Não, isso não me parece. A campanha, se menoriza alguma coisa, é a democracia, por cair em distorção dos factos e no ridículo dos preciosismos. Os contextos não são comparáveis, nem o PIB de 2016 é definitivo, mas todos sabemos quem começou a comparar, insistentemente. De resto, o imenso trabalho de Centeno não precisa que lhe façam este tipo de propaganda.


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