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Como foi atingido o 2.º défice mais baixo da democracia

Em 1989, Portugal alcançou um défice de 2,1% do PIB. Com os holofotes virados para o esforço orçamental desse ano, o Negócios falou com alguns dos protagonistas da época – incluindo o ministro Migue Cadilhe – e explica-lhe como é que esse resultado foi atingido, as diferenças e as semelhanças com 2016.

Octávio Paiva, Bruno Simão
31 de Março de 2017 às 12:00
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1989 foi um ano marcante. O Muro de Berlim veio abaixo, explodiram os protestos na Praça Tiananmen, a World Wide Web foi inventada, o Dalai Lama venceu o Nobel da Paz e os Simpsons apareceram pela primeira vez num ecrã de televisão. Em Portugal, assistia-se à caminhada vitoriosa da Selecção de juniores em Riade e à execução daquele que seria considerado por muitos anos o défice orçamental mais baixo da democracia portuguesa.

"Seria", porque já não é. Há dias, esse título foi capturado por 2016. Se escavarmos até às centésimas, o défice do ano passado fixou-se em 2,06% do PIB, enquanto em 1989 ficou nos 2,13%. O resultado foi aproveitado politicamente pelo PS, que espalhou cartazes com a conquista - "o défice mais baixo da nossa democracia" - e levou Pedro Passos Coelho a argumentar que é um primeiro lugar "ex aequo" com 1989. Essa é, no entanto, a vertente mais desinteressante da discussão. Que raio de diferença faz menos de 0,1 pontos? Os dois valores destacam-se pela positiva perante décadas de desequilíbrios orçamentais. Mas, se é verdade que o resultado de 2016 já foi amplamente discutido, incluindo aqui no Negócios, pouco sabemos sobre o que se passou em 1989. Afinal, como é que foram atingidos os 2,1%?

Dois anos antes, Cavaco Silva tinha pintado de laranja o mapa de Portugal, dando ao PSD a sua primeira maioria absoluta. Miguel Cadilhe era o ministro das Finanças desde 1985, e 1989 foi o último ano completo em que deteve a pasta. Em declarações ao Negócios, o antigo governante elege o principal factor por trás do défice desse ano: "Gestão e rigor orçamental." Curiosamente, a mesma justificação que Mário Centeno dá hoje para o resultado de 2016.

As semelhanças não se esgotam na semântica. Em 89, Portugal também tinha saído há pouco tempo de um ajustamento ainda com problemas por resolver. "Estava terminado um programa de ajustamento assistido pelo FMI. […] O programa havia implicado severas políticas de austeridade, incluindo a política cambial, mas não havia corrigido a situação das finanças públicas", lembra Cadilhe, no livro "O Sobrepeso do Estado em Portugal".

Ainda assim, as diferenças superam largamente os paralelismos. Recuperado da crise de 83-85, que trouxe pela segunda vez o FMI a Portugal, a economia cresceu a um ritmo de 7% ao ano entre 87 e 90. Uma miragem nos dias de hoje, quando uma aproximação aos 2% já é motivo de celebração. Os preços, que só há dois meses voltaram a crescer acima de 1%, avançavam há 28 anos acima dos 12%. O desemprego estava nos 6%. A dívida pública era uns muito geríveis 56% do PIB. Menos de metade do valor actual.

Era um país diferente. Também na forma como se gerem e controlam as contas públicas. Actualmente, a existência de tratados orçamentais europeus e de maior pressão comunitária serve de justificação para os governos actuarem. Miguel Cadilhe nota ainda que hoje há "mais vigilância e aconselhamento" e "mais informação em tempo real". Além disso, existe um Conselho das Finanças Públicas, a UTAO e um Tribunal de Contas mais activo. Por outro lado, entre o euro e as regras europeias, os executivos têm agora menos instrumentos à sua disposição. "Em 2016, o ministro das Finanças está menos apetrechado de políticas para gerir um 'mix' em que, porventura, pudesse fazer compensações. Em 1989, esse 'mix' era possível e foi usado", conta Cadilhe.

A revolução fiscal de 1989

Os esforços de rigor podem ter sido importantes para diminuir o défice, mas não chegam para explicar o resultado orçamental de 1989. Esse foi um ano especial por vários motivos e, no centro de todos eles, está uma das mais ambiciosas reformas do sistema fiscal português, que revolucionou a cobrança de impostos e acabou por dar uma ajuda ao equilíbrio orçamental.

Nesse ano foram criados o IRS e o IRC, que substituíram o imposto profissional, a contribuição predial, a contribuição industrial, o imposto de capitais, o imposto complementar e o imposto de mais-valias. O sistema fiscal deixa de ter vários elementos cedulares e transita para uma tributação unitária que engloba todos os rendimentos. Além disso, as retenções na fonte foram ampliadas e, para as empresas, foi criado o pagamento por conta. "Já havia retenções, mas elas passaram a ter uma abrangência muito maior. Hoje, bem mais de 90% do IRS é cobrado no ano do exercício", explica ao Negócios Manuel Faustino, que seria nomeado primeiro director do recém-criado IRS. A declaração no ano seguinte passa a servir essencialmente para fazer acertos. "Estávamos atrasadíssimos ao nível da tributação. Foi a reforma mais revolucionária feita no sistema fiscal português."

Claro que a transição foi difícil de explicar. Manuel Faustino lembra-se das críticas e da sua resposta. "Cheguei a ir de carrinha para a porta do [jornal] Independente com uma calculadora para fazer simulações e mostrar aos jornalistas que criticavam a reforma que não iam pagar mais", lembra. "Andámos a divulgar a reforma por todo o país. Tínhamos plateias de 700/800 pessoas na Exponor, que faziam perguntas e sugestões. E nós aceitámos algumas."

Foi um virar de página histórico para o sistema fiscal português e uma benesse para o orçamento. O fim de um regime e o início de outro implicou a sobreposição de alguma receita, como reconhece Rui Carp, que na altura fazia parte da equipa de Cadilhe, ocupando o cargo de secretário de Estado do Orçamento. "Houve um ano em que acabou por existir uma espécie de dupla tributação. Como é que resolvemos isso do ponto de vista ético? Consignámos a receita dos impostos extintos ao recém-criado Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social. Mas entrou como receita extraordinária", recorda.

As privatizações constituíram também receitas extraordinárias, embora tenham acabado por prejudicar também a despesa, uma vez que o Estado injectava dinheiro nas empresas antes de as vender, nota Rui Carp. Além disso, o fim da isenção do imposto complementar para os funcionários públicos aumentou a receita, mas fez disparar os gastos, impedindo que houvesse um corte nos salários.

Tudo somado, Rui Carp não tem dúvidas: os efeitos temporários ajudaram mais do que prejudicaram o défice. "O orçamento beneficiou claramente. Posso ter a glória de um défice de 2,1%, mas houve ajudas", sublinha, defendendo que esses efeitos não menorizam o resultado. "Eles existem quase todos os anos. Foi óptimo ter-se atingido 2,1% em 1989 e em 2016." Manuel Faustino também considera que houve impacto orçamental via sobreposição de receita, mas lembra que foi criado um sistema de pagamento em prestações que pode tê-lo minorado.

Mais escrutínio e mais transparência

Comparar dois anos tão distantes traz vários problemas. Além de passar por cima de condições especiais que a memória tende a esquecer, essa análise omite muitas vezes diferenças de contabilidade relevantes. Por exemplo, à luz das regras que vigoravam na altura, o défice de 1989 terá ficado em 6% do PIB. Contudo, as alterações que se seguiram, com a introdução do sistema europeu de contas 1995, colocaram-no em 2,1%. E, entretanto, até já há novas regras - SEC 2010 -, que nos impedem de fazer uma comparação totalmente justa entre 1989 e 2016.

Uma das principais diferenças está naquilo a que se chama o perímetro das Administrações Públicas. Uma maior exigência orçamental levou os governos a procurarem formas "criativas" de não engordar o défice. Depressa perceberam que podiam empurrar despesa e dívida para entidades que, apesar da sua natureza pública, não contavam para o saldo orçamental (empresas públicas de transportes, por exemplo). Em reacção, as autoridades estatísticas abriram o perímetro. Os défices saíram penalizados, mas o processo tornou-se mais transparente.

Hoje, há mais escrutínio e mais exigência. Na década de 80, não havia notificações do Procedimento dos Défices Excessivos (PDE), os instrumentos de medição eram menos sofisticados, era difícil cruzar e confrontar fontes de informação e as normas não eram tão claras. Por exemplo, especialistas no apuramento estatístico explicam ao Negócios que operações específicas como os aumentos de capital com dinheiro público eram analisados com pouca profundidade. Leia-se, um défice em 2016 tende a reflectir melhor a situação orçamental do sector público do que um número apurado há quase três décadas.

Manuela Ferreira Leite, que substituiu Rui Carp na secretaria de Estado do Orçamento em 1990, sublinha as dificuldades de comparação. "O défice comporta critérios contabilísticos que evoluem ao longo do tempo, portanto, tem pouco significado dizer que se trata de um défice maior ou menor", frisa ao Negócios. Novas regras implicam revisões para trás. "Dentro de dez anos, o défice de 2016 será diferente."

Porém, a comparação histórica pode servir para aprender. Quando alguém tenta emagrecer, um dos lugares-comuns mais repetidos é que "o mais difícil é manter o peso". Um cliché que se aplica ao défice de 89. Se actualmente muitos duvidam da sustentabilidade do resultado de 2016, olhar para o que aconteceu há 28 anos não os deixará mais descansados. Logo em 1990, o défice aumentou de 2,1% para 5% (e para 6% em 91), já sem Cadilhe nas Finanças. "Pelo ano 1990 já não respondo, nem deixei o terreno minado ao meu sucessor. Só posso dizer que comigo essa derrapagem não aconteceria", garante ao Negócios.

A história de 89 pode servir também de aviso a Centeno: o (anterior) menor défice da democracia não trouxe glória nem imunidade. Miguel Cadilhe foi demitido por Cavaco Silva logo no ano a seguir a esse feito.


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