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Terrenos da antiga Lisnave à espera de uma segunda vida

Os terrenos das antigas Lisnave, CUF e Siderurgia Nacional são hoje hectares de desolação, com vestígios de contaminação e ferrugem. Para os territórios que guardam parte da história industrial do país há projectos, mas tardam em sair do papel.

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Fechando os olhos não é difícil imaginar a actividade, os sons das gruas e guindastes, os grandes navios à espera de intervenção, os movimentos e as vozes de milhares de operários da Lisnave. Da agitação de outros tempos, nada resta nos terrenos da Margueira, em Cacilhas, Almada. Apenas um segurança guarda o acesso aos 53 hectares que durante mais de 30 anos foram ocupados por um dos melhores estaleiros de construção e reparação naval a nível mundial.

O silêncio impera. E a desolação. Das antigas oficinas pouco mais resta do que vidros partidos, torneiras calcinadas, ervas daninhas e quilómetros de ferrugem. De frente para o Terreiro do Paço só as gaivotas usufruem da vista e da calma que o rio transmite.

Em Almada, como no Barreiro e no Seixal, aguarda-se que se resolvam problemas administrativos, que se tomem decisões políticas, que se invista na eliminação dos históricos passivos ambientais para que os territórios que em tempos foram sinónimo da pujança da Lisnave, da CUF e da Siderurgia Nacional tenham direito a uma nova vida.

Juntos, os três espaços sob gestão da Baía do Tejo, empresa do universo Parpública responsável pelos parques empresariais da Margem Sul, somam 900 hectares disponíveis para investimento. No passado, foram a imagem do desenvolvimento industrial português. Hoje são pouco mais do que arqueologia. No futuro, querem ser Lisbon South Bay e estar na rota dos investidores.

Cidade da água em almada

O dia 31 de Dezembro de 2000, às zero horas, fica marcado pela desactivação do estaleiro da Margueira (e o arranque da actividade da Lisnave na Mitrena, Setúbal). Durante 33 anos, foram reparados nos estaleiros junto ao Tejo, que ostentavam a maior doca seca do mundo, 5.200 navios. A empresa chegou a empregar mais de 10 mil trabalhadores.

No recinto, são os letreiros que se apagam a cada ano que passa que assinalam a utilização que tiveram os diferentes edifícios. Do serviço de medicina no trabalho à central de bombagem, da sala de refeições à ferramentaria universal. Do alto dos seus 90 metros, o pórtico vermelho que identifica a Lisnave a quem a observa de Lisboa assiste à ruína.

Os antigos estaleiros servem de parque de estacionamento a embarcações desactivadas da Marinha (o Arsenal do Alfeite é ao lado). Ali descansam fragatas e um dos submarinos que, durante mais de 40 anos, esteve ao serviço da Armada Portuguesa. Na histórica doca 13, que tinha capacidade para receber navios até um milhão de toneladas, apenas param os barcos da Transtejo, que diariamente asseguram o vaivém entre as duas margens.

Nas paredes de velhos armazéns e oficinas, escamadas pelo tempo, está exposto o trabalho do artista português Vihls, que em 2014 realizou o vídeo para "Raised by Wolves" dos U2. "Apathy", lê-se num muro. "Believe", vê-se noutro. Palavras que poderiam interpretar os pensamentos do presidente da Câmara de Almada, Joaquim Judas, crítico da demora que o projecto que existe há anos para aquele território tem levado a sair do papel, mas crente de que o impulso possa estar para muito breve.
Os autarcas do Seixal, Almada e Barreiro, Joaquim Santos, Joaquim Judas e Carlos Humberto, defendem a importância, para o desenvolvimento regional da Margem Sul, dos eventuais investimentos que podem vir a ser realizados e que poderão ultrapassar os 1,7 mil milhões de euros.
Os autarcas do Seixal, Almada e Barreiro, Joaquim Santos, Joaquim Judas e Carlos Humberto, defendem a importância, para o desenvolvimento regional da Margem Sul, dos eventuais investimentos que podem vir a ser realizados e que poderão ultrapassar os 1,7 mil milhões de euros.
Nos terrenos da Margueira, está previsto nascer a Cidade da Água, um megaprojecto urbanístico, com habitação, serviços, uma marina, um terminal multimodal, hotéis, escritórios e áreas culturais e de lazer. O plano foi aprovado e publicado em 2009. No entanto, questões administrativas, como a da titularidade dos terrenos, têm atrasado o processo. Joaquim Judas acredita que agora se esteja na recta final e que este património possa passar para a Baía do Tejo até ao final deste ano.

A esta entidade pública, que tem como pilares de actuação a requalificação urbanística, a recuperação ambiental e a promoção dos terrenos do projecto Arco Ribeirinho Sul, já chegaram cartas de intenção de investimento na Cidade da Água de três grandes grupos internacionais. O projecto está previsto custar 1,2 mil milhões de euros. E irá demorar cerca de 10 a 15 anos a construir. Quem vier a vencer o concurso terá de cumprir na totalidade o plano que foi previsto pelo consórcio entre Atkins, Santa-Rita Arquitectos e o escritório de Richard Rogers, que no currículo tem os projectos do Centro Georges Pompidou, em Paris, e do Millennium Dome, em Londres.

A área do plano para a Margueira atinge os 115 hectares, da Cova da Piedade até Cacilhas. Serão 630 mil metros quadrados de área bruta de construção dividida pelas diferentes vocações, sendo que cerca de 70% será para uso misto. Lisboa fica a menos de dois quilómetros. Oito minutos num dos antigos cacilheiros.

A Cidade da Água já é o terceiro plano para aquele território. Para a zona chegou a ser apresentado o projecto de Manuel Graça Dias, chamado "A Elipse", mas conhecido como a "Manhattan de Cacilhas", pela altura que atingiam as torres previstas. Antes ainda houve um projecto do arquitecto Carlos Ramos, mais parecido com a Cidade da Água, mas com menos construção. Os três apresentavam pontos em comum: a localização da marina, o aproveitamento da doca 13 para o terminal multimodal e a manutenção do pórtico vermelho, ainda que todos o fizesse avançar na direcção do rio.

À espera de novos dias

No Barreiro, o momento é de expectativa. O impulso que se pretende dar ao emprego e à actividade económica no concelho tem de aguardar uma decisão do Governo quanto à localização do novo terminal de contentores da região de Lisboa.

O projecto permitiria reconverter a zona e acelerar o tratamento ambiental que tem estado a ser feito para eliminar vestígios deixados pela antigas indústrias químicas e metalúrgicas. Dos terrenos da antiga Companhia União Fabril já foram retirados dois milhões de toneladas de cinzas de pirite. E o trabalho continua, com a depuração de uma terra que teima em manter o tom ferrugento.

Foi há mais de 100 anos (1908) que Alfredo da Silva inaugurou a primeira fábrica no Barreiro e iniciou a produção de ácidos, transformando óleo de bagaço de azeitona para o fabrico de sabões. O crescimento mudou a paisagem ribeirinha e, a partir do Barreiro, a CUF transformou-se num grupo com negócios desde a indústria ligeira e pesada à banca e seguros, chegando a empregar 16 mil pessoas.

A mesma zona onde noutros tempos o Barreiro dava provas do desenvolvimento industrial do país é hoje um cenário desolado, de edifícios abandonados e equipamentos destroçados. Mesmo à beira-rio, uma bicicleta caída revela a presença de um pescador na zona que está ainda vedada ao público.


Confirmando-se o novo terminal de contentores, o projecto avançará na área que é agora cruzada pelos barcos de pesca. Como explica o presidente da Câmara do Barreiro, Carlos Humberto, o novo terminal irá conquistar espaço ao rio. Já o território, também ele ganho às águas, tem, no seu entender, de ser uma plataforma logístico-portuária, tecnológica e industrial. São 287 hectares à espera de investidores. Na antiga Quimiparque, agora Barreiro Business Park, gerido pela Baía do Tejo, já estão instaladas cerca de 200 empresas. O espaço não está abandonado, mas subaproveitado.

Por dia, saem dali centenas de camiões com ferro, sucata que chega ao pequeno porto do Barreiro e tem como destino a Siderurgia no Seixal. Uma ponte com 600 metros ligaria os dois concelhos em poucos minutos, sem a travessia que os dois municípios reclamam, os veículos são forçados a percorrer quase 25 quilómetros.

90 milhões para descontaminar

Do outro lado do rio Coina, a paisagem é de altos e baixos, com as chaminés da Siderurgia a marcarem os picos no horizonte. Hoje detida pelo grupo espanhol Megasa, que ganhou a privatização em 1997, a unidade do Seixal continua a funcionar. Um muro separa a fábrica em laboração do antigo alto-forno, abandonado desde que, em 2001, foi encerrada a actividade siderúrgica da empresa pública na aldeia de Paio Pires.

"País sem siderurgia não é um país, é uma horta", salientava em 1961 o então ministro da Economia, Ferreira Dias, na inauguração da fábrica da Siderurgia Nacional (SN) de António Champalimaud. Portugal não abandonou esta indústria pesada, mas, depois de nacionalizado em 1975, o grupo foi reestruturado na década de 90 e acabou dividido. O alto-forno chegou ao fim da vida e o fabrico de aço passou a ser feito através de forno eléctrico. A Siderurgia chegou a ter 6 mil trabalhadores, hoje tem 300.

A velha unidade, marco de outros tempos, ali continua. Há quem defenda que deva ser desmantelado, há quem o queira transformar em museu. Já houve propostas para o classificar como monumento. Hoje não passa de um vulto amolgado e ferrugento. A assistir às quedas de peças metálicas. Ao lado, junto ao rio Coina, há um porto desactivado, colorido por três gruas amarelas. No ar, cheira a indústria. Um ruído metálico ecoa.

O Parque Empresarial do Seixal, também sob a gestão da Baía do Tejo, soma 537 hectares, disponíveis para voltar a receber indústria, mesmo a pesada. Mas há um problema de contaminação.

O presidente da Câmara do Seixal, Joaquim Santos, estima que a descontaminação chegue aos 90 milhões de euros. As intervenções em terra irão custar 50 milhões de euros, a que se somam outros 40 milhões para resolver o problema na água. Até agora foram executados 13 milhões e, em 2017, haverá mais seis. "Ainda não se chegou a metade do caminho", lamenta.

O autarca garante que há interessados nacionais da área da indústria e logística, na zona sul que já está descontaminada, e há um processo de negociação a decorrer. Mas falta ainda intervir em muitos hectares, para os quais defende que se aproveite ao máximo os fundos europeus. É que na zona há 400 hectares disponíveis para fazer regressar ao concelho a matriz produtiva forte de outros tempos.

O Ministério do Ambiente promete avançar com a eliminação do histórico passivo ambiental que os grandes anos da indústria deixaram no Barreiro e no Seixal. A descontaminação dos solos industriais na margem sul do Tejo vai ser reforçada no próximo ano, com um investimento de 13 milhões, que é comparticipado em 85% por fundos comunitários, sendo os restantes 15% financiados pela Baía do Tejo.

As três candidaturas aprovadas incluem duas no concelho do Barreiro, no valor de cerca de sete milhões, e uma no concelho do Seixal, de seis milhões, sendo que os trabalhos de remoção das lamas e terras contaminadas nos terrenos industriais das antigas Siderurgia Nacional e Quimiparque devem começar em Março ou Abril do próximo ano. Para o Ministério, com esta intervenção, aquilo que eram os factores críticos, identificados pela Agência Portuguesa do Ambiente, ficam solucionados. Será agora feita uma análise mais fina da situação "para aferir da necessidade de intervenções adicionais, quer em termos de tipo, natureza e extensão", explica.

Expectativas para 2017

2017 pode ser um ano de avanço na resolução dos constrangimentos, de forma que novos projectos sejam uma realidade nos três antigos territórios industriais. A convicção é de Jacinto Pereira, presidente da Baía da Tejo, a entidade pública responsável pela sua promoção. "Já não vai demorar muito", garante, a concretizar a desafectação de terrenos na Margueira e a passá-los para a propriedade da empresa pública, que, com o Tesouro e a Parpública, irá lançar o concurso para a Cidade da Água.

No próximo ano, espera o autarca Joaquim Judas, há condições para definir o modelo de negócio e avançar com o concurso para o megaprojecto que vai mudar as vistas à cidade de Lisboa. Na linha de partida está um grupo norte-americano, de um chinês e de um britânico. "Developers", assinala Jacinto Pereira, garantindo não se tratar de especuladores.

O presidente da Câmara de Almada quer celeridade. E mais compromisso de envolvimento do Executivo, quer na promoção quer na disponibilidade para resolver novos problemas administrativos que se venham a colocar. É que o projecto para a Margueira resultará em mais emprego e mais investimento para o país.


Também Carlos Humberto, o autarca do Barreiro, recusa baixar os braços. O estudo de impacto ambiental do novo terminal de contentores, aponta, deverá estar concluído no primeiro trimestre de 2017, de forma que ainda na primeira metade do ano garanta que o Governo pode tomar uma decisão e fazer avançar o empreendimento. Só no novo porto está previsto um investimento entre 500 e 600 milhões de euros. Também a esta autarquia já chegaram manifestações de interesse de diversos grupos internacionais, entre os quais a dinamarquesa Maersk que o tornou público. Para o Governo, o projecto avança depois da conclusão dos estudos e havendo a garantia de que há interessados. Carlos Humberto prefere dizer que falta apenas a decisão política suportada no estudo de impacto ambiental.

Num concelho que, no último quarto de século, perdeu 15 mil postos de trabalho e viu partir cerca de 20 mil habitantes, o futuro terminal é sinónimo de emprego e actividade económica. O novo porto funcionará como âncora para novos investimentos. "No Barreiro, são quase 300 hectares que é possível potenciar, com o terminal será mais fácil", sublinha o autarca, que tem procurado mover montanhas para que o seu concelho receba um projecto recusado por outros.

No Seixal, Joaquim Santos critica o Estado por ter ficado com o ónus da descontaminação quando privatizou a Siderurgia. Lamenta que há quase 20 anos se arraste o problema e exige acções concretas que permitam que o Seixal, que conta já com um "cluster" ambiental, volte a ser um pólo industrial.

Para a Baía do Tejo, a preocupação passa por separar o trigo do joio, investidores credíveis de especuladores. Para Jacinto Pereira, há interessados em instalar-se no Barreiro se for construído o novo terminal. Na Margueira, apesar da demora, não houve desistências de nenhum dos que se mostraram formalmente interessados. O Seixal pode vir a receber investimentos de umas dezenas de milhões de euros.

Os três territórios, garante o presidente da empresa pública, passaram a estar no radar do investimento internacional. A marca Lisbon South Bay (comparticipada em 70% pela Baía do Tejo e em 30% pelos municípios) foi criada em Março último para a sua promoção e "teve uma repercussão grande". O novo conceito de "Lisboa-região" tem estado a ser apresentado no estrangeiro, com a ajuda da Invest Lisboa (empresa criada em parceria entre a autarquia da capital e a Câmara de Comércio e Indústria) e com os municípios de Almada, Barreiro e Seixal. Jacinto Pereira garante que tem gerado um interesse crescente desde há três anos. O facto de Lisboa estar na moda ajudou.

Nos salões imobiliários internacionais, como em Cannes ou Munique, ou em "roadshows", como o que já decorreu no Brasil, promovem-se os 900 hectares que a região de Lisboa tem para oferecer. Acções que serão intensificadas. Para os autarcas, a capital portuguesa deve ser vista como uma cidade de duas margens, à qual os territórios dos três concelhos podem ser complementares.

Em cima da mesa há, neste momento, um potencial de investimento que pode ultrapassar os 1,7 mil milhões de euros nestas regiões. E projectos que prometem tornar os actuais cenários de abandono e destruição numa memória remota. Por isso, os três autarcas prometem continuar a puxar pelos projectos, a batalhar, a reclamar. Ou como diz Carlos Humberto: "Não contem comigo para desistir."



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