Notícia
Liberdade, igualdade e fraternidade?
A lenta agonia do PS francês acelerou-se com a presidência de François Hollande. O nacionalismo de Le Pen e a projecção não-ideológica de Macron evidenciam o fim de uma era. A primeira volta das presidenciais francesas realiza-se a 23 de Abril e, para muitos, o PS já está fora da corrida. Não tem um rumo e balcanizou-se. Deixou de existir. Em França e não só.
Em Abril de 1984, o então Presidente francês François Mitterrand deu uma conferência de imprensa que chocava com todos os rituais conhecidos na Quinta República. Não se sentou numa sala sombria, decorada ao estilo de Luís XV, com flores vermelhas, brancas e azuis. Não parecia nesse momento um professor da Sorbonne, como o general De Gaulle gostava de parecer. Escolheu os jardins do Eliseu. Uma bandeira nacional está desfraldada por trás dele. Tinha deixado de ser "monsieur, le Président" para passar a "Mr. President". Era uma mutação cénica e ideológica. Mitterrand vinha contaminado pela sua recente visita aos EUA e a Silicon Valley. Falou entusiasticamente da modernização e das novas tecnologias. Falou de lucro e sucesso e não de salários e de preços. Disse que era necessário substituir as antigas indústrias para tornar França um poder económico credível e para fazer face às realidades da competição comercial. Passadas poucas semanas, o primeiro-ministro Pierre Mauroy (um símbolo do "velho" Partido Socialista Francês) foi substituído por um jovem e tecnocrata, Laurent Fabius. Depressa foi anunciado que cada escola em França, mesmo na zona rural mais distante, teria um computador. No Natal de 1984, os anúncios em França eram dominados pelas prendas de equipamento electrónico para os mais novos. A França socialista e tradicionalista apanhava boleia da revolução económica e cultural que já se desenvolvia nos EUA e na Grã-Bretanha, sob os auspícios de Ronald Reagan e de Margaret Thatcher. O socialismo começava a farejar no ar a "terceira via". Que viria a vingar na Grã-Bretanha mas muito pouco em França.
A mutação de Mitterrand tornara-o menos influenciado pelos patriarcas do pensamento socialista francês, de Léon Blum a Jaurès. O homem que queria destruir o capitalismo percebia que a sua via para o futuro passava por Silicon Valley, o epicentro da ideologia da economia de mercado global. É certo que França tentava modernizar-se há muito, mas havia a sensação de que a sua economia e o Estado não eram adeptos de grandes mudanças. E foi também aí que França deixou de ter tanta força como a Alemanha em matéria de liderança da União Europeia.
O previsível desastre eleitoral de Benoît Hamon será o culminar da liquidação ideológica do PS, entalado entre um liberalismo económico a que se aliou por conveniência e um nacionalismo que não compreende. Assim, esgotou-se como alternativa.
O dilema do PS francês é o mesmo de outros partidos da mesma área, noutras paragens: o PASOK grego eclipsou-se; o Partido Trabalhista britânico radicalizou-se até à insanidade; o PSOE em Espanha vive uma luta de poder fratricida.
Passadas tantas décadas, as eleições francesas, com o novo nacionalismo de Le Pen e com a projecção não-ideológica de Emmanuel Macron, evidenciam o fim de uma era. A lenta agonia do PS francês acelerou-se, sobretudo com a desastrada presidência de François Hollande. Para alguns, o partido deixou mesmo de existir: está fora da campanha, está sem desejos próprios e sem voz nos mais importantes debates. A ambição política e ideológica sucumbiu, porque deixou de ter um ideal alternativo face a todas as outras forças que se movem no tabuleiro político e social. O previsível desastre eleitoral do seu candidato, Benoît Hamon, será o culminar desta liquidação ideológica e eleitoral do PS, entalado entre um liberalismo económico a que se aliou por conveniência e um nacionalismo que não compreende. Assim, esgotou-se como alternativa.
O dilema do PS francês é o mesmo de outros partidos da mesma área, noutras paragens: o PASOK grego eclipsou-se; o Partido Trabalhista britânico radicalizou-se até à insanidade; o PSOE em Espanha vive uma luta de poder fratricida.
Uma sociedade fracturada
O público apoio do antigo primeiro-ministro Manuel Valls a Emmanuel Macron simboliza isto: o PS francês não tem um rumo e balcanizou-se. Nem é liberal nem socialista: é uma nuvem passageira. Tornou-se incapaz, tal como muita da esquerda social-democrata europeia, de responder aos grandes desafios destes tempos: a falência do Estado social, a precarização da classe média, o reaparecimento da questão da identidade dos povos e das nações, o desafio da imigração, o futuro do trabalho numa sociedade robotizada, o poder das multinacionais contra os nichos de gosto não nivelado pela comunicação global.
O desnorte é mais assinalável quando Macron é um objecto político não identificado: pode ser de esquerda, de direita ou do centro. Depende. Pior: não tem um partido político por trás (apesar de estar a construir um) e as eleições legislativas são pouco tempo depois das presidenciais. Como será a convivência de um Macron no Eliseu com um Parlamento hostil? Deixando de lado o radicalismo de Jean-Luc Mélenchon, a esquerda que circula na órbita do PS vê a desintegração de um espaço político outrora símbolo da mudança e do sonho. Agora, preso às teorias do "não há alternativa", o PS deixou de ter pensamento próprio. E por isso fica refém do populismo de Marine Le Pen ou da telegenia de Macron.
Que sobra, então, da "liberdade, igualdade, fraternidade", os ecos da Revolução Francesa que ainda hoje ecoam? Cientes do poder desmesurado da Alemanha, confrontados com uma imigração que está a colocar em causa a identidade francesa, sentindo a insegurança no trabalho e no futuro, os franceses viraram-se para as sereias possíveis. Le Pen dá-lhes respostas simples. Macron apresenta-as mais complexas. Mas, no fundo, o caldo cultural em que se movem tem que ver com a crise francesa, que não é só económica: é social e cultural. E política, é claro. Os alvos estão identificados: o Islão, a globalização e a União Europeia. É, pois, a questão da identidade (ser cristão, perceber a diversidade da própria França) que está em jogo. E são temas como esses que o PS também se mostra incapaz de discutir. Tal como a social-democracia europeia, forte nos tempos do crescimento económico pós-guerra, mas hoje incapaz de dar respostas neste mundo onde há poucas certezas e muitos receios.
Frente a este colapso socialista e com o descalabro de François Fillon, os opositores são Le Pen e Macron. Vêm de mundos diferentes: Macron é um antigo quadro da banca de investimento, com um diploma na École Nationale d'Administration (ENA), a escola da elite para os funcionários públicos, e foi ministro da Economia de Hollande. Orgulha-se de ser liberal, a favor da imigração e pró-europeu. À direita acusam-no de considerar a França não uma nação, mas um espaço. Onde cada um se pode mover à vontade. E onde o que conta é a produtividade e os dados económicos. Isto choca com a cultura empresarial da França do interior e com o patriotismo. Ou seja, nas duas candidaturas encontram-se as linhas de fractura da sociedade francesa: entre um país sem fronteiras e um ciente da sua identidade, entre a lógica da identidade francesa e a livre circulação de pessoas e bens, entre o cristianismo e o Islão, entre a globalização e França. Temas que encontramos mais ou menos claros no Brexit ou na eleição de Donald Trump. É neste contexto minado que o socialismo francês se perdeu.
A mutação de Mitterrand tornara-o menos influenciado pelos patriarcas do pensamento socialista francês, de Léon Blum a Jaurès. O homem que queria destruir o capitalismo percebia que a sua via para o futuro passava por Silicon Valley, o epicentro da ideologia da economia de mercado global. É certo que França tentava modernizar-se há muito, mas havia a sensação de que a sua economia e o Estado não eram adeptos de grandes mudanças. E foi também aí que França deixou de ter tanta força como a Alemanha em matéria de liderança da União Europeia.
O previsível desastre eleitoral de Benoît Hamon será o culminar da liquidação ideológica do PS, entalado entre um liberalismo económico a que se aliou por conveniência e um nacionalismo que não compreende. Assim, esgotou-se como alternativa.
O dilema do PS francês é o mesmo de outros partidos da mesma área, noutras paragens: o PASOK grego eclipsou-se; o Partido Trabalhista britânico radicalizou-se até à insanidade; o PSOE em Espanha vive uma luta de poder fratricida.
Passadas tantas décadas, as eleições francesas, com o novo nacionalismo de Le Pen e com a projecção não-ideológica de Emmanuel Macron, evidenciam o fim de uma era. A lenta agonia do PS francês acelerou-se, sobretudo com a desastrada presidência de François Hollande. Para alguns, o partido deixou mesmo de existir: está fora da campanha, está sem desejos próprios e sem voz nos mais importantes debates. A ambição política e ideológica sucumbiu, porque deixou de ter um ideal alternativo face a todas as outras forças que se movem no tabuleiro político e social. O previsível desastre eleitoral do seu candidato, Benoît Hamon, será o culminar desta liquidação ideológica e eleitoral do PS, entalado entre um liberalismo económico a que se aliou por conveniência e um nacionalismo que não compreende. Assim, esgotou-se como alternativa.
O dilema do PS francês é o mesmo de outros partidos da mesma área, noutras paragens: o PASOK grego eclipsou-se; o Partido Trabalhista britânico radicalizou-se até à insanidade; o PSOE em Espanha vive uma luta de poder fratricida.
Uma sociedade fracturada
O público apoio do antigo primeiro-ministro Manuel Valls a Emmanuel Macron simboliza isto: o PS francês não tem um rumo e balcanizou-se. Nem é liberal nem socialista: é uma nuvem passageira. Tornou-se incapaz, tal como muita da esquerda social-democrata europeia, de responder aos grandes desafios destes tempos: a falência do Estado social, a precarização da classe média, o reaparecimento da questão da identidade dos povos e das nações, o desafio da imigração, o futuro do trabalho numa sociedade robotizada, o poder das multinacionais contra os nichos de gosto não nivelado pela comunicação global.
O desnorte é mais assinalável quando Macron é um objecto político não identificado: pode ser de esquerda, de direita ou do centro. Depende. Pior: não tem um partido político por trás (apesar de estar a construir um) e as eleições legislativas são pouco tempo depois das presidenciais. Como será a convivência de um Macron no Eliseu com um Parlamento hostil? Deixando de lado o radicalismo de Jean-Luc Mélenchon, a esquerda que circula na órbita do PS vê a desintegração de um espaço político outrora símbolo da mudança e do sonho. Agora, preso às teorias do "não há alternativa", o PS deixou de ter pensamento próprio. E por isso fica refém do populismo de Marine Le Pen ou da telegenia de Macron.
Que sobra, então, da "liberdade, igualdade, fraternidade", os ecos da Revolução Francesa que ainda hoje ecoam? Cientes do poder desmesurado da Alemanha, confrontados com uma imigração que está a colocar em causa a identidade francesa, sentindo a insegurança no trabalho e no futuro, os franceses viraram-se para as sereias possíveis. Le Pen dá-lhes respostas simples. Macron apresenta-as mais complexas. Mas, no fundo, o caldo cultural em que se movem tem que ver com a crise francesa, que não é só económica: é social e cultural. E política, é claro. Os alvos estão identificados: o Islão, a globalização e a União Europeia. É, pois, a questão da identidade (ser cristão, perceber a diversidade da própria França) que está em jogo. E são temas como esses que o PS também se mostra incapaz de discutir. Tal como a social-democracia europeia, forte nos tempos do crescimento económico pós-guerra, mas hoje incapaz de dar respostas neste mundo onde há poucas certezas e muitos receios.
Frente a este colapso socialista e com o descalabro de François Fillon, os opositores são Le Pen e Macron. Vêm de mundos diferentes: Macron é um antigo quadro da banca de investimento, com um diploma na École Nationale d'Administration (ENA), a escola da elite para os funcionários públicos, e foi ministro da Economia de Hollande. Orgulha-se de ser liberal, a favor da imigração e pró-europeu. À direita acusam-no de considerar a França não uma nação, mas um espaço. Onde cada um se pode mover à vontade. E onde o que conta é a produtividade e os dados económicos. Isto choca com a cultura empresarial da França do interior e com o patriotismo. Ou seja, nas duas candidaturas encontram-se as linhas de fractura da sociedade francesa: entre um país sem fronteiras e um ciente da sua identidade, entre a lógica da identidade francesa e a livre circulação de pessoas e bens, entre o cristianismo e o Islão, entre a globalização e França. Temas que encontramos mais ou menos claros no Brexit ou na eleição de Donald Trump. É neste contexto minado que o socialismo francês se perdeu.