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O abalo do centrão francês

Implosão dos partidos tradicionais ou reorganização do espaço político? A questão coloca-se a duas semanas das presidenciais francesas. Socialistas e conservadores arriscam-se a ficar de fora do "sprint" final das eleições, mas não necessariamente da governação do país.

07 de Abril de 2017 às 12:30
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Nos boletins de voto para a mais do que provável segunda volta das presidenciais gaulesas não deverá constar nenhum candidato das duas principais famílias políticas do sistema partidário francês. O que, a confirmar-se, acontecerá pela primeira vez desde a proclamação da V República, em 1958. Mas nestas eleições, cuja primeira volta se realiza no próximo dia 23 de Abril, não se joga apenas a escolha do próximo Presidente de França. Joga-se também o destino dos dois maiores partidos franceses, o Partido Socialista francês e Os Republicanos (LR, que agora ocupa o espaço do centro-direita).

A fazer fé nas sondagens, a líder da Frente Nacional (FN, de extrema-direita), Marine Le Pen, e o independente Emmanuel Macron - ambos com intenções de voto que variam entre 24% e 26% - serão os candidatos mais votados na primeira volta, com a vitória a poder cair para qualquer um dos lados. Macron e Le Pen surgem como os claros favoritos a marcar presença no segundo turno, de 7 de Maio, sendo que na segunda volta a candidata da extrema-direita é dada como derrotada por qualquer um dos candidatos considerados moderados.

Por razões distintas, o conservador François Fillon, d'Os Republicanos, e o socialista Benôit Hamon (centro-esquerda) devem ficar arredados da discussão final. Fillon ainda tem margem para acalentar a esperança de ser ele o candidato do campo moderado a enfrentar Le Pen, especialmente depois de a sondagem desta semana do Les Echos lhe ter atribuído 20% das intenções de voto. Contudo, o antigo primeiro-ministro continua a ser penalizado pelo escândalo judicial que envolve o recurso a dinheiros públicos para a atribuição de empregos fictícios à mulher e a dois filhos. Constituído arguido, Fillon deu o dito por não dito e não se retirou da corrida presidencial, o que poderia ter aberto caminho a uma alternativa do campo conservador, presumivelmente Alain Juppé. Já Hamon foi caindo e persiste em não superar os 10%, incapaz de mobilizar o eleitorado tradicional socialista e também prejudicado pelo desgaste do partido. Hamon aparece atrás de Jean-Luc Mélenchon (candidato do França Insubmissa, formação de esquerda radical), que no debate televisivo desta terça-feira, segundo o estudo da Elabe, foi mesmo considerado o "mais convincente" dos 11 candidatos ao Eliseu.

Após mais de cinquenta anos de contraposição entre o centro-esquerda e o centro-direita, há agora uma nova dicotomia, opondo o cosmopolitismo de Macron ao nacionalismo de Le Pen?

"Não", responde Daniel Oliveira, antigo dirigente do Bloco de Esquerda. "O que está a acontecer é uma implosão dos maiores partidos", diz este comentador que encontra na "degradação do espaço político do centro" a explicação para a perda de relevância eleitoral dessas forças. Principalmente do PS francês. Já José Adelino Maltez identifica antes uma "reorganização desse espaço político". O professor de Ciência Política do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) cataloga de prematuro o atestado de óbito aos partidos tradicionais, lembrando que são "forças muito elásticas", de grande implantação autárquica e habituadas a grandes oscilações eleitorais ao longo da História. E justifica a "reconversão" em curso da social-democracia, visível não apenas em França, mas na generalidade da Europa, com o falhanço de líderes como François Hollande - que contrariou a prática habitual ao não se recandidatar ao Eliseu -, Tony Blair ou até Lula da Silva. O politólogo acredita que o "centrão" gaulês sofreu um "importante abalo", mas não vislumbra em França "nenhum desaparecimento da esquerda e da direita tradicionais".

Estas eleições acontecem num contexto de grande descontentamento em relação ao socialista François Hollande, que termina o mandato presidencial com níveis de popularidade historicamente baixos, sem ter cumprido as principais promessas eleitorais e após ter cedido em toda a linha à via austeritária preconizada por Bruxelas e Berlim.

Para Daniel Oliveira, a fragilidade do PS francês resulta da indiferenciação entre centro-esquerda e centro-direita. "Há uma convergência de sentido inverso entre a social-democracia e a democracia-cristã, transformada em ultraliberal a partir dos anos 1990. Enquanto a direita se reinventou, a social-democracia tornou-se redundante, não representa uma alternativa ao poder vigente na Europa, que é de recuo no Estado Social", resume. Apesar de não subscrever este diagnóstico, Maltez concede que o centro-esquerda precisa de "encontrar uma nova alternativa ao chamado reformismo social-democrata".


A social-democracia tornou-se redundante, diz Daniel Oliveira. Adelino Maltez considera que o centro-esquerda precisa de encontrar uma nova alternativa ao chamado reformismo social-democrata.  


O enfraquecimento do PS francês dever-se-á também ao acervo europeísta do partido. Maltez lembra que os socialistas estão "em crise porque, tal como o Partido Popular Europeu (PPE), têm um problema grave, que é a União Europeia. Consideraram que a Europa era um valor superior e isso teve consequências políticas." O discurso alternativo foi capturado pela FN, com a retórica anti-europeia de Le Pen a ecoar junto de boa parte do eleitorado francês, abrangendo um espectro político que mostra crescente desconfiança em relação a Bruxelas. Daniel Oliveira defende que, para recuperar o eleitorado perdido para a FN, "a esquerda terá de abandonar os delírios europeístas para ser mais livre e bater-se por esses eleitores".

A tentação de marcar a diferença relativamente ao passado levou o "centrão" a fazer escolhas inesperadas nas respectivas primárias. Os socialistas optaram por Hamon, um homem da ala esquerda do PS que se dedicou a combater o Governo de inspiração liberal de Valls (de que fez parte como ministro da Educação). E os conservadores escolheram Fillon, que antes da polémica judicial surgia como um político impoluto em contraponto ao ex-presidente Nicolas Sarkozy.

Confrontados com uma crise de identidade, os dois partidos deram primazia a candidatos das alas mais radicais, ambos com posições eurocépticas, o que acabou por abrir espaço ao centro, que apesar de nunca ter elegido um Presidente da sua área política, é o espaço onde se ganham e perdem eleições. Foi aí que irrompeu Macron.

Candidato sem partido que vai precisar dos partidos

Tendo iniciado a corrida presidencial como um "outsider", a surpreendente ascensão de Emmanuel Macron permite agora ao antigo ministro da Economia do Executivo socialista chefiado por Manuel Valls aparecer como o candidato mais bem posicionado para travar a ameaça Le Pen. Os estudos de opinião mostram que este antigo banqueiro, de 39 anos, capitalizou junto do eleitorado mais moderado e também dos descontentes com a política. É difícil precisar o posicionamento político de Macron, que diz não ser de esquerda nem de direita. À direita é visto como alguém de esquerda e vice-versa. Daniel Oliveira vê nele um político do centro-direita que quer conquistar votos à esquerda, e Maltez encara-o como um seguidor da tradição liberal. Macron quer superar a mera identificação partidária e ser visto para lá da velha clivagem esquerda-direita. Talvez por isso Macron não tenha acolhido com especial entusiasmo o apoio conferido por Valls, candidato derrotado nas primárias socialistas que enjeitou apoiar o "esquerdista" Hamon das "propostas irrealizáveis".

Adelino Maltez reitera que, nestas eleições, o que está em causa "não é a esquerda nem a direita", mas o "perigo" inerente às reais possibilidade de vitória de Le Pen, e a um discurso que assenta em três "anti": "anti-União Europeia, anti-globalização e anti-cosmopolita". A que Macron responde com um discurso que é a perfeita antítese das posições iliberais da Frente Nacional. Afirmando-se "pragmático", o ministro responsável pela reforma laboral - amplamente rejeitada pelo eleitorado -, que pretende aprofundar se for eleito, coloca a tónica na divisão entre "europeísmo e soberania", entre "multilateralismo e nacionalismo". E parece estar a ganhar a aposta. No debate de terça-feira, Macron citou a velha glória socialista e ex-presidente, François Mitterrand, voltando-se para Le Pen proclamando que "o nacionalismo é a guerra".

No entanto, apesar do seu apartidarismo, se Macron for eleito Presidente, precisará dos "velhos" partidos do arco da governação. Porque não poderá governar sem apoios no Parlamento que sair das legislativas de Junho, que "costumam replicar o resultado das presidenciais e, desta vez, não vão replicar", nota Daniel Oliveira. O que salvaguarda o sistema partidário gaulês da implosão porque, "para implodir, Macron teria de contar com um partido".



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