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JP Simões: Nunca fui um produto fácil de vender

Em duas décadas de música, JP Simões já vestiu muitas peles. Integrou várias bandas, lançou-se em projectos a solo, sempre diferentes – até fez óperas. Agora, é tempo de uma nova ruptura. JP Simões já nem é JP Simões. Agora é Bloom, ele e Miguel Nicolau, e é tudo novo.

Miguel Baltazar
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Disco novo, vida nova. No seu novo projecto, JP Simões muda tudo: o estilo de música, a língua e até o nome. Bloom é o seu novo projecto e "Tremble Like a Flower", o nome do álbum que há uma semana está disponível nas lojas. Esqueça tudo o que ouviu antes. É música que levita e nos leva a paisagens longínquas, num registo instrumental muito denso, onde os arranjos de Miguel Nicolau fazem despontar as guitarras num mar imenso de cordas, teclas, sopros e ritmos. Senhoras e senhores, JP Simões, da sua música ao nosso mundo. 

 

Estudaste jornalismo, direito da comunicação, escrita de argumento, literatura, só não estudaste música, que é o que fazes profissionalmente. Como é que isto aconteceu?

Estudei música durante duas semanas, na terceira classe. Tinha um professor muito simpático. Tenho uma recordação muito vaga, era muito querido, toda a gente gostava dele, era muito bom com os miúdos. Andei duas ou três semanas com uma guitarra, que tinha implorado à família. Ele costumava andar de mota e um dia ia atrás de um camião de caixa aberta com placas de zinco, aquelas para cobrir as barracas de apoio à construção, e saiu uma que lhe cortou a cabeça.

 

A sério?

Durante muito tempo não voltei a pegar na guitarra.

 

Mas porque ficaste traumatizado com a história?

Não, mas deixei de ter as aulas e perdi a motivação. Típico dos miúdos daquela idade. Depois fui sempre ouvindo música, é a nossa parte da ambrósia dos deuses, é uma coisa maravilhosa, que faz bem à inteligência e ao coração, adoro música, sempre adorei e acho que vou adorar sempre. Mas a minha relação com ela era profundamente amadora...

 

Eras um mero ouvinte. Quando começas a tocar e a cantar?

Na adolescência, tocava e cantava, mas num sentido mais lúdico. Saio à noite com amigos desde os 13 anos e não havia muita coisa para fazer à noite em Coimbra. As nossas noites eram ir para sítios mágicos, tocar e cantar. E fazer rituais satânicos, tudo de uma forma muito amadora, naturalmente. Levar uma guitarra para mim era uma possibilidade de dar qualquer coisa à festa.

 

Portanto, não foi nada programado?

Não. A música nunca foi uma coisa que me ocorresse vir a fazer. Mas para falar verdade também nunca me ocorreu nada em particular. Nunca tive uma ambição muito precisa.

 

[Neste disco], não há nenhuma proeminência, não há a sombra ou a fantasmagoria de ninguém.  

 

Ia perguntar-te se eras músico por convicção ou por exclusão de partes?

Sou melómano por convicção. Adoro música, mas nunca pensei em ser músico. E mesmo a forma como apareci no meio musical foi muito contingencial, foram situações graciosas que me levaram a chegar aqui e ali.

 

Tens uma longa carreira musical. O que mais me impressiona não é o número de anos, mas o número de projectos em que estiveste envolvido. Começaste com os Pop Dell’Arte, formaste os Belle Chase Hotel e depois o Quinteto Tati…

No meio houve outros trabalhos, que foram essencialmente teatro musicado. Escrevi a "Ópera do Falhado", consegui levar à cena apesar de ter 50 pessoas a trabalhar lá.

 

Depois tiveste projectos a solo. Mas foram sempre coisas muito diferentes entre si. Que inquietação é esta que te faz saltar de projecto em projecto? Parece que estás sempre à procura de uma coisa diferente…

Não sei… Tem muito que ver com as circunstâncias e com as motivações ou desmotivações do momento. Neste preciso momento, por vários motivos, e por uma vontade de renovar a minha vida em muitos outros aspectos, quis avançar para qualquer coisa mais próxima do que suponho ser a minha expressão essencial. Fiz mais uma ruptura.

 

Mas esta mudança permanente resulta de uma insatisfação com o que fizeste antes? Olhas para trás e já não gostas do que vês?

Sim, as coisas deixam de fazer sentido. Eu também demoro um bocado no processo de escrita e composição, e quando os dois saem já estou noutra. Há sempre esse desencontro, o que me faz pensar que tenho de começar a trabalhar mais depressa. Os projectos e as bandas que fiz esgotaram-se no número de edições e concertos que tiveram e acho que estão muito bem assim. A ideia de uma banda, um casamento, pode ser muito engraçada, mas eu ainda não encontrei condições para o fazer. Pode ser que agora, com o novo projecto…

 

Ainda não estás cansado deste novo projecto? [risos]

Não. Este foi um parto muito difícil: o disco ["Tremble Like a Flower"] demorou a fazer, a compor, a produzir, todas as questões logísticas foram muito difíceis, os "deadlines", a falta de dinheiro. Mas no meio destas trapalhadas todas, o que interessa é que esta foi a música que mais prazer me deu fazer e tocar. Não trago nada aquele enfado como em projectos anteriores, em que depois do entusiasmo inicial me fartava. Nos últimos anos de trabalho, ganhei confiança na forma de tocar, compor e cantar e estou a sentir que isto é um começo muito auspicioso, estou cheio de vontade de lhe dar continuidade.

 

Mas porquê Bloom?

Porque não?

 

É um nome que remete para tantas coisas diferentes: pode ser o seu significado literal de florescer; pode ser o nome da personagem do romance "Ulisses", de James Joyce; pode não ser nada disto…

Eu gosto dessa denotatividade… conotativa.

 

Então, não há nenhuma razão para o nome?

Há, claro. E há sempre uma escolha que passa por um amadurecimento do nome, enquanto qualquer coisa que nós achamos que pode significar o que queremos expor. Comecei a compor este trabalho porque achei que era um trabalho bastante menos urbano, mais paisagístico, uma coisa mais natural e menos ansiosa do que os meus trabalhos anteriores.

 

Isso nota-se. O registo é muito diferente dos anteriores e não é pela alegria, que o anterior já era alegre.

Sim, sim, completamente.

 

O que senti foi uma certa luminosidade e uma grande densidade, talvez também pelos arranjos envolvidos. Mas tu foste à procura disso ou foi nascendo por estares a trabalhar com o Miguel Nicolau [guitarrista dos Memória de Peixe]?

Nós arriscamos sempre e desta vez arrisquei muito bem, não só no método de trabalho, mas também nas colaborações. A única coisa é que devia ter tido mais tempo para misturas e remasterização, teria ganho com isso. Assim ficou com um certo toque "low-fi". Porque não? Acabámos por assumir isso como uma característica do álbum. De resto, estou muito feliz porque as colaborações, as pessoas que fui escolhendo, deram muito mais do que estava à espera e levaram isto muito além do que poderia esperar, em todos os aspectos. Nomeadamente, a sonoridade final do disco.

 

[Propuseram-me] fazer um apanhado da carreira. Eh pá, sou algum Matusalém? Nunca hei-de fazer essa porcaria. Não sei se estou a ser como o Dr. Paulo Portas [risos]. Ainda se pagassem bem...  

 

Como foi a construção do álbum?

Comecei pela composição-base, que foi guitarra e voz, que foram os temas, e depois desenvolvi essas ideias das canções com o Miguel Nicolau – foi sempre qualquer coisa que tinha muito que ver com a paisagem natural. E o nome Bloom encaixava aí muito bem, é o imperativo de crescer e ao mesmo tempo também é um nome engraçado, que está ligado a muita coisa da literatura, desde críticos literários [Harold Bloom] até ao Leopold Bloom, do "Ulisses". Acabou por fazer bastante sentido.

 

O álbum é muito contemplativo. É uma boa banda sonora para se apreciar uma paisagem.

Sim… Acho que ele já traz as paisagens incluídas. Há muita sugestão ali, há muito trabalho musical que acho que gera espaço bastante mais amplo e mais natural do que qualquer outra coisa que eu tivesse feito antes. O nome que estava à espera de ser confirmado, Bloom, foi tornando-se cada vez mais coerente com o trabalho e ficou.

 

Este é também o projecto em que enxotas as influências do Chico Buarque e de toda a MPB e bossa nova, que são grandes referências.

Durante muito tempo, ouvi "ad infinitum" a obra dele e apaixonei-me. Procurei tomá-lo como meu mestre e partir daí para a minha produção artística. Mas muita da música que eu fiz nesse ambiente, mais MPB ou samba, tem muitas influências de outras coisas, também do Brasil. Mas o Chico durante muito tempo foi, enquanto escritor de canções, meu mestre absoluto. Agora quis fazer um disco onde finalmente a presença que lá estivesse fosse o mais possível a minha. Há muitas referências neste disco, mas creio que não há nenhuma proeminência, não há a sombra ou a fantasmagoria de ninguém.

 

A questão da língua não é essencial na escolha das inspirações? A sensação que tenho é que quando cantas em inglês vais buscar outras inspirações, diferentes das que tens quando cantas em português.

Toda a música portuguesa que se faz agora tem três ou quatro influências na forma de cantar. Os estilemas, as formas, os trejeitos, vêm de três ou quatro figuras da música popular moderna portuguesa. O que quero dizer é que não tem que ver com o inglês, tem que ver com as matrizes que as pessoas têm na cabeça.

 

Não achas que a língua acaba por influenciar a música que se faz?

O que interessa é que as coisas funcionem. O inglês foi a língua que me formou. Foi com o inglês que senti as coisas mais variadas desde que comecei a ouvir música, na minha adolescência.

 

Ao longo da tua carreira foste saltando de uma para outra. Dirias que é mais difícil escrever em português porque o público é mais exigente? O teu esmero nas letras é diferente?

É uma forma diferente de escrever e pensar. As línguas, quando são maternas, são também todo um manancial de tensões, preconceitos e apriorismos, tiques... Para mim, o português implica sempre uma relação mais forçada com a escrita.

 

Há vários músicos que dizem que é mais fácil escrever em inglês.

Depende. O inglês é uma espécie de língua de fundo que toda a gente ouve e que até pode estar a trautear uma canção sem a perceber. É uma língua mais comercial e elástica, dissilábica.

 

Enquanto ouvinte, sou mais exigente com o português do que com o inglês. Há aquele jogo divertido de traduzir letras em inglês, de que gostamos muito, para português e acharmos que fica uma chachada.

Sim, é verdade. Mas eu tenho o mesmo cuidado a escrever em inglês e em português. Escrever em inglês não é uma justificação para não se dizer nada. A minha relação com o português do meu próprio trabalho já estava estafada e eu não queria que este novo projecto ficasse manchado com alguma coisa que não me soasse bem. E o português agora não me soa bem. Se há alguma coisa a dizer deste país, é muito radical… Um dos motivos por que me apetece ouvir cada vez mais música é que a música é um espaço imaculado relativamente ao resto. E, nesse espaço que fui criando com esta música, que para mim é nova dentro da minha forma de compor e produzir, escolhi uma língua que me pareceu menos intrusiva, mais terna e que tinha muito mais que ver com as bases e influências que me levaram a este disco.

 

O teu processo criativo arranca pelas melodias ou pelas letras?

Em geral, a música vem primeiro.

 

E compões à viola?

Sim, normalmente à viola.

 

E a inspiração ocorre-te de repente? Vais no metro e surge-te uma melodia engraçada.

Não, muito raramente. O meu trabalho é essencialmente criar condições para ter tempo, não estar a pensar em nada e trabalhar as horas que forem precisas para chegar a algum lado. Muitas vezes 10 ou 12 horas.

 

Como trabalhar a criar? Não há um horário. Levantas-te de manhã e dizes "vou criar um pouco"? Deve ser preciso muita disciplina.

Eu não tenho muita disciplina, mas tenho teimosia para a substituir. É mais cansativo. Há alturas que até posso estar muito desligado da guitarra e da música porque estou com outras coisas na cabeça – também temos de respeitar o nosso próprio instrumento, corpo e alma – e há alturas em que compenso e trabalho semanas seguidas, todos os dias e utilizo o método tentativa-erro até encontrar um ponto de partida a partir do qual vou construindo alguma coisa. Exige tempo, concentração e dedicação.

 

Na origem, é sempre um trabalho bastante solitário?

Sim, sempre.

 

Mesmo quando trabalhavas com bandas?

É diferente. Mas a composição é sempre um processo solitário. Já fiz muitas parcerias mas, em geral, ou fazia a música e outros faziam a letra ou vice-versa. Depois a parte de ensaiar e por cima daquilo criar outras ideias, mudar coisas, isso acontece quase sempre em grupo.

 

Também cantas músicas de outros autores. É o caso de "Inquietação", de José Mário Branco, e "A pele que há em mim", da Márcia. Como é a tua relação a cantar músicas de outros?

Gravar coisas dos outros? [pausa] Gosto do meu trabalho, prefiro aprender com ele, há um lado bastante terapêutico em estar a escrever e compor, esse trabalho implica um reforço da limpeza mental. Há sempre um trabalho terapêutico psicanalítico na composição e escrita e para me aproximar de uma expressão mais genuína possível do que sou. É coisa que não acontece quando faço interpretações.

 

Nunca tiveste pessoas a convidar-te para cantar músicas delas?

Tive imensas pessoas, mas preciso de muito tempo e concentração para chegar a algum lugar com o meu trabalho. Muitas vezes ou essas parcerias são algo em que largo tudo porque vale a pena, 1% das vezes, ou então penso que vou perder muito tempo e não se justifica.

 

É mais difícil cantar as músicas dos outros? Na medida em que as tuas estão feitas à medida, prontas a vestir por ti.

Não. Às tantas é mais fácil cantar as músicas dos outros porque já estão feitas. Pegamos naquilo e cantamos à nossa maneira. Como no "Parabéns a você", as pessoas cantam aquilo fora de tom. Às vezes é o pior caos possível. É fácil cantar porque já tens a matriz. Depois há outras exigências, a minha forma de trabalhar e de me relacionar com a música é amadora, no sentido em que não tenho nenhum plano do que vou fazer, não sou um tipo que tenha feito alguma vez estratégias de carreira, nem nada que se pareça, sou muito descuidado nessas coisas, descuidado na imagem, na produção, mas de facto é o trabalho que eu faço para viver. Nesse aspecto, sim, sou um profissional.

 

Eu não tenho muita disciplina, tenho é teimosia para a substituir. É mais cansativo. 

 

Notas algum efeito da idade na forma como se compõe? Não te estou a chamar velho [risos].

Estás, estás. Claro que há um efeito, de tanta água mole em pedra dura. Eu sempre tive uma relação funcional com a música que ia fazendo, não tive formação musical de facto e com o passar do tempo a minha forma de pensar a música, o domínio do instrumento, os esquemas e os métodos para compor vão sendo mais acertados. Esta nova fase, este novo nome, esta nova música, tudo isto é mesmo um recomeço. Dentro do meu percurso creio que dei um salto enorme na forma como toco e como componho. Se não tivesse tido tempo para o fazer, não tinha conseguido. O tempo tem esta coisa: [se] usas, gastas. Se bem que a alternativa não tem grande interesse. Que é deixar de gastar tempo e pronto.

 

Dizias que desvalorizas a parte promocional. É a parte que te chateia mais?

Vamos lá ver. Nunca fui um produto fácil de vender. Tenho o meu feitio, estou sempre a mudar de nomes, de músicas: encurtando a história, a parte estrutural do meu trabalho que tem que ver com promoções e vendas, no sentido de me ajudar a pensar, o "management" verdadeiro: isso foi uma coisa que tive sempre pouca sorte. Porque muitas vezes as pessoas não acrescentavam nada ao meu trabalho, aceitavam propostas que não tinham nada que ver com o que queria fazer. Também não sabiam bem o que estavam a vender. Basicamente nunca tive uma posição de exigência, acreditei nas pessoas e em quase 90% das vezes fiquei desiludido com o trabalho delas.

 

E agora?

Neste momento, estou a trabalhar com uma nova agência e até agora não tenho nada a dizer. Vamos ver [risos]. Muitas vezes há uma forma de funcionar na promoção, venda e gestão de imagem, que é pouco empenhada, muito superficial. Por exemplo, quero mudar alguma coisa, um som novo, uma ideia nova, um disco mais politizado e, de repente, aparece a proposta para fazer um apanhado da carreira. Eh pá, sou algum Matusalém? Nunca hei-de fazer essa porcaria. Não sei se estou a ser como o Dr. Paulo Portas [risos]. Ainda se pagassem bem…

 

E logo tu que não gostas de olhar para o passado.

Não gosto nada. Basicamente trabalhei sempre com pessoas que não conheciam o meu trabalho, que não conheciam as minhas ansiedades, estou em crer que aproveitaram muito mal a minha potencialidade enquanto artista.

 

Fazer música em Portugal não deve ser fácil. É tudo pequeno no nosso país e o meio musical há-de ser ainda mais pequeno.

Fazer música não é difícil e fazer música boa até tem acontecido muito. Agora há uma diversidade de estilos, géneros, de abertura, de festivais, de novos espaços associativos, de novos espaços de concertos, há mil e uma associações que se criaram, essencialmente graças à crise política económica e financeira que os políticos de todo o mundo nos ofereceram.As pessoas desistiram de ser doutores e engenheiros, de trabalhar para a Função Pública e começaram a criar associações e a necessitar de programação e houve um "bloom" [risos] de oferta de espaços e de iniciativas de programação e com isso a música também cresceu e a oferta musical cresceu muito. Até há pouco tempo havia muito pouca coisa e as pessoas mimetizavam­-se um bocado umas às outras. Essa ideia de que a música em Portugal é difícil... Sempre foi difícil pela profunda falta de capacidade de toda a estrutura ligada ao comércio da música, a começar nas editoras, que mantinham uma profunda falta de confiança naquilo que criavam.

 

Era a isso que me referia quando falava em dificuldade em fazer música.

Agora começa a ser mais fácil. As pessoas que fazem as bandas conhecem alguém que filma, que mexe bem nas redes sociais e de repente põem as coisas a funcionar e aí aparece alguém que pode arranjar dinheiro. As coisas agora fazem mais sentido: eles sabem o que estão a oferecer. Antigamente havia três ou quatro mercearias da música e eles tentavam encaminhar-te para aqui ou para ali.

 

Dizes que és um cidadão do mundo. Em que sentido?

No sentido em que sou formado por tudo aquilo que oiço, conheço e posso imaginar. E todas as línguas que eu puder ouvir são o mundo a falar comigo. E devolvo, com essa matéria que tenho.

 

O tempo tem esta coisa: [se] usas, gastas. Se bem que a alternativa não tem grande interesse. Que é deixar de gastar tempo e pronto.  

 

A pergunta anterior tinha um propósito. Chegar à Europa, com a qual estamos muito integrados, para o bem e para o mal. Como te sentes? Português ou europeu? Como vives a questão da nacionalidade?

Eu tenho uma coisa simples a dizer, parafraseando Mahatma Gandhi. Quando lhe perguntaram o que achava do Ocidente, ele respondeu: "Acho uma boa ideia." Eu também acho a Europa uma boa ideia, mas enfim… Convenhamos, os valores mais altos e mais vinculativos são reféns do dinheiro e ponto final. Não há volta a dar, não há treta nenhuma, distracção nenhuma que nos possa fazer esquecer isto. 

 

Para ti, a Europa é algo cerceador ou um mundo de oportunidades?

A Europa, enquanto União Europeia, é, antes de tudo, uma utopia do século XX pós­-guerra. A humanidade tem o seu momento alto de compreensão e de criação de boas intenções, de arrependimento, de reflexão, depois de muita carnificina. E, essa carnificina toda e esse estado de consciência fortíssimo leva-nos mais longe, leva-nos a procurar perceber que há outras prioridades, nomeadamente o respeito mútuo, a paz e, com esta, a paz social que implica que as pessoas tenham possibilidade de viver, que haja estruturas, Constituições:  palavras mágicas que garantam todos os direitos que as pessoas merecem. E, para evitar novas guerras, criou-se essa utopia, esta Europa, que devia ser uma Europa de partilha, de apoio mútuo. Mas o que aconteceu não foi isso. Não é uma Europa social, de apoio mútuo, também por muita culpa dos próprios países.

 

És a favor da moeda única?

Não tenho grande conhecimento económico-financeiro, nunca estudei muito essa questão.

Como viveste o período de austeridade mais aguda? O que se passou no mundo musical?

As estruturas que estavam a funcionar antes, que tinham dinheiro e que trabalhavam quase sempre com os mesmos músicos, essas foram-se abaixo. O que acontece é que se criaram imensas associações, de gente que foi investindo e arranjando apoios europeus. Muito deste associativismo resulta da necessidade de as pessoas se alimentarem, é uma forma de arranjar dinheiro. Estas associações tiveram então de arranjar programação para os seus espaços. Para um músico como eu, que posso tocar numa banda com 15 pessoas ou, de repente, tocar sozinho as minhas músicas, consigo ir a esses espaços todos. Começou a haver muita oferta de espaços pequenos, com baixos cachês, e, de repente, dei comigo a ter bastante trabalho. Mas para a maior parte dos músicos isso não aconteceu.

 

E como vês esta nova fase da chamada geringonça?

Há sempre um desanuviamento e diminuição de tensão quando a esquerda governa. Os políticos de esquerda têm tendência para parecerem mais simpáticos e já faz parte do seu discurso essa simpatia e o seu relacionamento com as pessoas, de uma forma menos autoritária. Isto está só ao nível do tique e das escolas. Há duas escolas retóricas: é o que tem distinguido o centro-direita do centro-esquerda. Dando uma resposta mais infantil e básica, gosto mais destes tipos [actual solução governativa], sem dúvida. Mas, no cômputo geral, não vejo grandes diferenças, não vejo que se esteja a mudar muito.

 

O país está sujeito a restrições orçamentais muito grandes.

E isto que se passa com a banca? Porque é que os banqueiros não são responsabilizados? Por que razão é o Estado que tem de pagar aos clientes que de boa-fé puseram o dinheiro no banco? O sistema político não tem a mínima independência, não pode impor medidas justas à banca porque o sistema bancário é um polvo, é uma rede global. Fazer alguma coisa seria uma espécie de medida comunista, seria sempre muito mal vista pela banca global que, naturalmente, tende para o fascismo, que é o que faz prevalecer os valores de quem tem contra quem não tem. Como alguém da finança [Warren Buffett] dizia, há uma luta entre pobres e ricos e nós [os ricos] estamos a ganhar. Sinto que nesta vertigem colorida, neste mundo de informação e publicidade, os cidadãos têm cada vez mais opções, mas menos alternativas. Os monopólios são sempre os mesmos, há empresas diferentes com nomes diferentes, mas que são dos mesmos donos. 

 

Há sempre um desanuviamento e diminuição de tensão quando a esquerda governa. Os políticos de esquerda têm tendência para parecerem mais simpáticos. 

 

Vivemos numa ilusão de diversidade?

Sim, a iniciativa privada é uma ideia muito vaga aqui. Existem monopólios, mas como são proibidos, fazem-se certas variações, mas são as mesmas pessoas que criam a empresa alternativa. Há muitas cadeias de supermercados que têm o mesmo dono, mas são concorrentes.

 

Como olhas para o que se está a passar nos EUA, com a eleição de Donald Trump?

Depende das abordagens à questão: numas fico mais preocupado, noutras fico menos preocupado. Na verdade não me serve de muito ficar preocupado, não vejo o que possa fazer. Trump ganhou porque conseguiu dizer às pessoas aquilo que elas conseguiam ouvir com mais clareza. Os EUA são um país bizarro, um país de colonizadores, dizimaram os povos que viviam lá… É uma história de violência e uma obsessão pelo puritanismo cristão, é uma combinação bizarra. Aquela ideia dos psicopatas que estão a imitar passagens da Bíblia ou que julgam que falam com Deus é claramente a expressão do que é para mim a esquizofrenia americana. A partir daí é muito difícil perceber para onde é que aquelas pessoas estão inclinadas. Guerras, eles sempre provocaram, têm uma forte indústria de armamento para manter. Agora, o fantasma de uma guerra nuclear? Não é boa para os negócios, pelo que não creio que Trump vá carregar no botão. 

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