Notícia
Eleições dos EUA: A viagem do elefante está a chegar ao fim?
No dia 8 de Novembro, o país mais poderoso do mundo vai a votos para escolher um novo líder. Olharemos um dia para esta eleição como um momento marcante na vida (ou morte) do Partido Republicano?
Quando os dinossauros se começaram a extinguir, provavelmente também não deram por isso. Desaparecia um Triceratops ali, um Stegosaurus acolá, mas não havia uma consciência colectiva de estarem perante o fim. Um elefante velho sentirá o mesmo? O Partido Republicano - ou Grand Old Party (GOP) - está há alguns anos a remar contra a maré demográfica dos Estados Unidos e arrisca-se a ser arrastado pela corrente para a irrelevância política.
Embora a polémica dos e-mails esteja a pressionar Hillary Clinton nas sondagens, o cenário mais provável ainda é uma vitória da democrata no dia 8 de Novembro. Tem uma vantagem de dois a três pontos na média das sondagens e lidera em estados decisivos, como a Pensilvânia ou o Colorado. Nesta altura, os sites especializados atribuem a Donald Trump uma probabilidade de vitória entre 14% e 34%. Mas, ainda que o milionário acabe por ganhar, dificilmente travará os problemas estruturais do partido.
Este texto pode parecer um obituário, mas começa com uma autópsia… feita pelo próprio defunto. Em 2012, depois da derrota de Mitt Romney às mãos de Barack Obama, alguns no interior do Partido Republicano perceberam o beco sem saída em que se tinham deixado encurralar. Decidiram olhar para os motivos pelos quais perderam o voto nacional em cinco das seis últimas eleições, com estados como Novo México, Colorado, Nevada e Virgínia cada vez mais democratas. "A percepção pública do partido está em mínimos. Os eleitores jovens reviram cada vez mais os olhos em relação àquilo que o partido representa e muitas minorias pensam erradamente que os republicanos não gostam delas ou não as querem no país", pode ler-se no estudo, que cita os colunistas Mike Gerson e Peter Wehmer: "Não é uma surpresa que as políticas republicanas pareçam as mesmas; elas são praticamente iguais àquelas que foram oferecidas pelo partido há mais de 30 anos."
Nuno Garoupa, professor catedrático de Direito na Universidade do Texas A&M, coloca a raiz da tendência nos anos 70. "Entre Nixon e Reagan, [os republicanos] mataram a ala esquerda. Com Reagan, o partido juntou a direita libertária com os democratas conservadores do Sul. Isto levou a uma coexistência de duas tendências: os conservadores e a direita cristã", explica, por e-mail, ao Negócios. "Bush filho manteve o equilíbrio, como qualquer partido no poder. Tudo se desfez desde 2008. As duas tendências enfrentam-se e nenhuma consegue dominar a outra. Teoricamente, estas eleições eram fáceis para o GOP. Mas as divisões dentro das duas tendências geraram Trump."
"Diversificar ou morrer"
As sugestões centrais da autópsia de 2012 não eram polémicas: melhorar a operação digital e online do partido e abri-lo às minorias, adaptando as ideias à nova estrutura demográfica americana. Alguns candidatos, como Jeb Bush ou Marco Rubio, seriam nomes capazes de levar essa agenda para a frente, mas foram soterrados pela enxurrada Trump. O milionário decidiu ir na direcção oposta. No primeiro discurso como candidato, chamou violadores aos imigrantes e a sua proposta mais icónica é construir um muro na fronteira com o México. Não exactamente ímanes para o voto hispânico (o grupo eleitoral em maior crescimento).
O GOP está hoje dividido entre aqueles que pretendem ver os seus valores cristalizados e a plataforma ideológica de Trump assumida permanentemente - anticomércio externo, anti-imigração e anti-Washington - e os republicanos mais tradicionais ou "fiscal conservatives", que essencialmente querem um Estado mais pequeno e menos interventivo. A primeira facção está a dar uma sova à segunda. E parte da culpa é da sovada. "Esta é a crise do intelectual conservador. O que faz desta crise aguda é o conhecimento que ele e os seus antecessores podem ter ajudado a trazê-la sobre si próprios", escreve Matthew Continetti, no site conservador Free Beacon.
Para Tim Miller, republicano e antigo porta-voz de Jeb Bush, "é extraordinário que exista sequer uma discussão". "Imagino que um especialista em estatística ou um consultor de gestão olhem para os dois caminhos e nem sequer perceba qual é o debate", sublinha no The Ringer. Se nada mudar, "vamos continuar a cair pelo fosso demográfico". "As opções para o GOP são diversificar ou morrer."
Para já, a opção republicana - materializada na escolha de Trump como nomeado - parece ser caminhar para a cova. E basta um olhar panorâmico sobre a demografia dos EUA para perceber porquê. Entre 1992 e 2016, os brancos passaram de 84% para 70% dos eleitores, os negros de 10% para 12%, os hispânicos de 5% para 9%. O que aconteceu ao GOP nesse período? A percentagem de brancos caiu menos (93% para 86%), os afro-americanos ficaram na mesma (2%), os latinos cresceram menos (3% para 6%). Para perceber o impacto destas mudanças, basta pensar que, em 2012, Romney teve 59% do "voto branco" e só ganhou 24 estados. Em 1980, Reagan teve 56% e venceu em 44 estados. "Brancos zangados e pouco qualificados não são uma fórmula para vencer eleições", explica, ao Negócios, Walter Shapiro, jornalista e conferencista em Yale.
Em 1992, os republicanos eram mais jovens e mais qualificados do que os democratas. Hoje, é o contrário. A percentagem de eleitores com mais de 50 anos passou de 40% para 51%, mas entre republicanos saltou de 38% para 58%. De 23%, os licenciados passaram a representar 33% dos eleitores, mas entre os republicanos mudou menos (28% para 31%).
Com cada vez mais hispânicos a votar, ter um partido cujas principais propostas afectam as suas comunidades pode não ser a melhor receita. O partido de Abraham Lincoln ficou mais velho e pouco mais diversificado e qualificado. A fatia mais ruidosa da sua base está mais fechada, paranóica e permeável a teorias da conspiração. 70% dos republicanos ainda duvidam que Obama tenha nascido nos EUA e mais de 40% acham que ele é muçulmano, a mesma percentagem dos apoiantes de Trump em Carolina do Norte que pensam que Clinton é o diabo. Os temas são discutidos a quilómetros dos factos e com muita agressividade: o aquecimento global é um mito, o crime está a disparar nos EUA, o Obamacare está desenhado para matar velhos, Clinton devia estar presa…
Ben Howe, republicano e contribuidor do conservador Red State, resume bem a encruzilhada em que muitos republicanos moderados se encontram. "Esta não é a melhor forma de o dizer, mas para onde é que vais quando as únicas pessoas que parecem concordar contigo sobre impostos odeiam pretos?", dizia Ben Howe ao site FiveThirtyEight.
Clinton será a dilma norte-americana?
Há quem espere que uma derrota de Trump faça desaparecer estes problemas na madrugada de 9 de Novembro, deixados para trás com os confetis e os bonés vermelhos "Make America Great Again". Porém, haverá feridas por sarar junto das minorias e nem o melhor truque de magia fará desaparecer os milhões de apoiantes do milionário. Quando se pergunta quem representa melhor as suas ideias, 51% dos republicanos respondem Trump, só 33% dizem Paul Ryan, presidente da Câmara dos Representantes, visto como um dos que simbolizam a corrente menos populista do GOP. Em quem votarão os apoiantes de Trump em 2021? Num candidato mais ao centro? Alguém que defenda o mesmo que Trump, mas mais disciplinado? Ou no próprio Trump como independente?
Os republicanos moderados temem desiludir uma base cada vez mais radicalizada e altamente influenciada pelos media da direita radical, como o Breitbart (cujo ex-CEO dirige a campanha de Trump). Quando o Tea Party apareceu, os seus candidatos tiraram do Congresso muitos republicanos "tradicionais", ultrapassando-os pela direita.
O que provavelmente assistiremos é a uma batalha pelo coração do GOP. Para Nuno Garoupa, a dimensão da vitória de Clinton será decisiva. "Se for uma derrota pesada, haverá uma guerra civil do partido e penso que ganhará a tendência mais radical, o que tornará o Partido Republicano dificilmente relevante nos próximos anos", antecipa. "Se for uma derrota leve, o partido estará convergente contra Clinton, começará logo a conversa do 'impeachment' e a guerra interna fica adiada até às intercalares de 2018. Uma derrota leve fará de Clinton a Dilma americana."
Shapiro considera que é muito cedo para obituários. "Provavelmente, haverá algum tipo de cisão no partido, mas aqueles que acham que o GOP vai desaparecer não percebem quão forte é a cultura bipartidária nos EUA. É mais provável mudarem do que morrerem."
Charles Darwin aconselharia o Partido Republicano a mudar. É que até elefantes capazes de fantásticas proezas - como abolir a escravatura - chegam eventualmente ao fim da sua viagem e as suas pernas acabam como bengaleiros.
Embora a polémica dos e-mails esteja a pressionar Hillary Clinton nas sondagens, o cenário mais provável ainda é uma vitória da democrata no dia 8 de Novembro. Tem uma vantagem de dois a três pontos na média das sondagens e lidera em estados decisivos, como a Pensilvânia ou o Colorado. Nesta altura, os sites especializados atribuem a Donald Trump uma probabilidade de vitória entre 14% e 34%. Mas, ainda que o milionário acabe por ganhar, dificilmente travará os problemas estruturais do partido.
Nuno Garoupa, professor catedrático de Direito na Universidade do Texas A&M, coloca a raiz da tendência nos anos 70. "Entre Nixon e Reagan, [os republicanos] mataram a ala esquerda. Com Reagan, o partido juntou a direita libertária com os democratas conservadores do Sul. Isto levou a uma coexistência de duas tendências: os conservadores e a direita cristã", explica, por e-mail, ao Negócios. "Bush filho manteve o equilíbrio, como qualquer partido no poder. Tudo se desfez desde 2008. As duas tendências enfrentam-se e nenhuma consegue dominar a outra. Teoricamente, estas eleições eram fáceis para o GOP. Mas as divisões dentro das duas tendências geraram Trump."
"Diversificar ou morrer"
As sugestões centrais da autópsia de 2012 não eram polémicas: melhorar a operação digital e online do partido e abri-lo às minorias, adaptando as ideias à nova estrutura demográfica americana. Alguns candidatos, como Jeb Bush ou Marco Rubio, seriam nomes capazes de levar essa agenda para a frente, mas foram soterrados pela enxurrada Trump. O milionário decidiu ir na direcção oposta. No primeiro discurso como candidato, chamou violadores aos imigrantes e a sua proposta mais icónica é construir um muro na fronteira com o México. Não exactamente ímanes para o voto hispânico (o grupo eleitoral em maior crescimento).
O GOP está hoje dividido entre aqueles que pretendem ver os seus valores cristalizados e a plataforma ideológica de Trump assumida permanentemente - anticomércio externo, anti-imigração e anti-Washington - e os republicanos mais tradicionais ou "fiscal conservatives", que essencialmente querem um Estado mais pequeno e menos interventivo. A primeira facção está a dar uma sova à segunda. E parte da culpa é da sovada. "Esta é a crise do intelectual conservador. O que faz desta crise aguda é o conhecimento que ele e os seus antecessores podem ter ajudado a trazê-la sobre si próprios", escreve Matthew Continetti, no site conservador Free Beacon.
Para Tim Miller, republicano e antigo porta-voz de Jeb Bush, "é extraordinário que exista sequer uma discussão". "Imagino que um especialista em estatística ou um consultor de gestão olhem para os dois caminhos e nem sequer perceba qual é o debate", sublinha no The Ringer. Se nada mudar, "vamos continuar a cair pelo fosso demográfico". "As opções para o GOP são diversificar ou morrer."
Para já, a opção republicana - materializada na escolha de Trump como nomeado - parece ser caminhar para a cova. E basta um olhar panorâmico sobre a demografia dos EUA para perceber porquê. Entre 1992 e 2016, os brancos passaram de 84% para 70% dos eleitores, os negros de 10% para 12%, os hispânicos de 5% para 9%. O que aconteceu ao GOP nesse período? A percentagem de brancos caiu menos (93% para 86%), os afro-americanos ficaram na mesma (2%), os latinos cresceram menos (3% para 6%). Para perceber o impacto destas mudanças, basta pensar que, em 2012, Romney teve 59% do "voto branco" e só ganhou 24 estados. Em 1980, Reagan teve 56% e venceu em 44 estados. "Brancos zangados e pouco qualificados não são uma fórmula para vencer eleições", explica, ao Negócios, Walter Shapiro, jornalista e conferencista em Yale.
Em 1992, os republicanos eram mais jovens e mais qualificados do que os democratas. Hoje, é o contrário. A percentagem de eleitores com mais de 50 anos passou de 40% para 51%, mas entre republicanos saltou de 38% para 58%. De 23%, os licenciados passaram a representar 33% dos eleitores, mas entre os republicanos mudou menos (28% para 31%).
Com cada vez mais hispânicos a votar, ter um partido cujas principais propostas afectam as suas comunidades pode não ser a melhor receita. O partido de Abraham Lincoln ficou mais velho e pouco mais diversificado e qualificado. A fatia mais ruidosa da sua base está mais fechada, paranóica e permeável a teorias da conspiração. 70% dos republicanos ainda duvidam que Obama tenha nascido nos EUA e mais de 40% acham que ele é muçulmano, a mesma percentagem dos apoiantes de Trump em Carolina do Norte que pensam que Clinton é o diabo. Os temas são discutidos a quilómetros dos factos e com muita agressividade: o aquecimento global é um mito, o crime está a disparar nos EUA, o Obamacare está desenhado para matar velhos, Clinton devia estar presa…
Ben Howe, republicano e contribuidor do conservador Red State, resume bem a encruzilhada em que muitos republicanos moderados se encontram. "Esta não é a melhor forma de o dizer, mas para onde é que vais quando as únicas pessoas que parecem concordar contigo sobre impostos odeiam pretos?", dizia Ben Howe ao site FiveThirtyEight.
Clinton será a dilma norte-americana?
Há quem espere que uma derrota de Trump faça desaparecer estes problemas na madrugada de 9 de Novembro, deixados para trás com os confetis e os bonés vermelhos "Make America Great Again". Porém, haverá feridas por sarar junto das minorias e nem o melhor truque de magia fará desaparecer os milhões de apoiantes do milionário. Quando se pergunta quem representa melhor as suas ideias, 51% dos republicanos respondem Trump, só 33% dizem Paul Ryan, presidente da Câmara dos Representantes, visto como um dos que simbolizam a corrente menos populista do GOP. Em quem votarão os apoiantes de Trump em 2021? Num candidato mais ao centro? Alguém que defenda o mesmo que Trump, mas mais disciplinado? Ou no próprio Trump como independente?
Os republicanos moderados temem desiludir uma base cada vez mais radicalizada e altamente influenciada pelos media da direita radical, como o Breitbart (cujo ex-CEO dirige a campanha de Trump). Quando o Tea Party apareceu, os seus candidatos tiraram do Congresso muitos republicanos "tradicionais", ultrapassando-os pela direita.
O que provavelmente assistiremos é a uma batalha pelo coração do GOP. Para Nuno Garoupa, a dimensão da vitória de Clinton será decisiva. "Se for uma derrota pesada, haverá uma guerra civil do partido e penso que ganhará a tendência mais radical, o que tornará o Partido Republicano dificilmente relevante nos próximos anos", antecipa. "Se for uma derrota leve, o partido estará convergente contra Clinton, começará logo a conversa do 'impeachment' e a guerra interna fica adiada até às intercalares de 2018. Uma derrota leve fará de Clinton a Dilma americana."
Shapiro considera que é muito cedo para obituários. "Provavelmente, haverá algum tipo de cisão no partido, mas aqueles que acham que o GOP vai desaparecer não percebem quão forte é a cultura bipartidária nos EUA. É mais provável mudarem do que morrerem."
Charles Darwin aconselharia o Partido Republicano a mudar. É que até elefantes capazes de fantásticas proezas - como abolir a escravatura - chegam eventualmente ao fim da sua viagem e as suas pernas acabam como bengaleiros.