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Missão prioritária do futuro Presidente dos EUA: colar os cacos da campanha

O principal desafio do próximo Presidente dos EUA é colar os cacos de uma sociedade polarizada. E resgatar o centro político ao radicalismo de esquerda e direita. Fora de portas, terá de responder a uma China cada vez mais rica e a uma Rússia musculada.

Reuters
04 de Novembro de 2016 às 16:00
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Uma sociedade dividida, a erosão do centro moderado e crescente polarização política, o desafio chinês e a ameaça russa. Desconhece-se ainda quem será o próximo inquilino da Casa Branca, mas os principais reptos a que o futuro Presidente dos Estados Unidos (EUA) terá de responder estão identificados. A própria campanha eleitoral que agora termina espelhou estas problemáticas. A começar pelas inéditas taxas de impopularidade dos principais candidatos, tanto da democrata Hillary Clinton (53%) como do republicano Donald Trump (60%). Que, na opinião do politólogo Jaime Nogueira Pinto, são "reflexo da profunda dissidência dos cidadãos em relação ao futuro cidadão número um dos Estados Unidos".

Todos os estudos mostram um enorme descontentamento na sociedade norte-americana. Em especial da classe média e trabalhadora, a mais penalizada pela recessão, pela evolução tecnológica e pela competição externa inerente à globalização. O também historiador Nogueira Pinto aponta ainda "o estilo e a linguagem" utilizados pelas duas campanhas, que levaram a "uma radicalização pela negativa, concentrada no ataque e nas injúrias pessoais". Factores que, conjugados, agravaram a erosão do chamado "centrão", essencialmente composto pela direita democrata e pela esquerda republicana. É que, nunca como agora, o eleitor médio democrata e republicano se posicionou tão à esquerda e tão à direita, respectivamente. O que ajuda a explicar o fenómeno Bernie Sanders, no Partido Democrata, ou o sucesso de Trump e do cristão Ted Cruz, no Republicano.

A tradicional dúvida sobre se o futuro Presidente dará primazia à política interna ou externa foi substituída, desta feita, pela convicção generalizada de que a grande tarefa passará pela tentativa de colar os cacos que a mais polémica campanha de que há memória contribuiu para estilhaçar. Até porque, sublinha Tiago Moreira de Sá, professor de Relações Internacionais da Universidade Nova de Lisboa, era este "centro moderado que fazia os grandes acordos de regime". E cuja fragilidade pode colocar em causa a governabilidade dos EUA, muitas vezes ameaçada, durante a administração do democrata Obama, pela câmara baixa (dos Representantes) que é controlada por um Partido Republicano cada vez mais radical.


É por esta razão que, para Tiago Moreira de Sá, "a prioridade absoluta do próximo Presidente será a política interna, mesmo que o cargo seja ocupado pela internacionalista liberal Hillary Clinton". Jaime Nogueira Pinto concorda, identificando, "na política interna", como desafio de maior magnitude do próximo Presidente norte-americano, a necessidade de "lidar com uma sociedade bipolarizada, não só política e ideologicamente, mas também étnica e culturalmente". Porém, Jaime Nogueira Pinto salienta que "a erosão do 'centrão' não é um fenómeno só americano, é também europeu". O historiador nota que esta reacção, além de "popular", é também "nacional, por oposição ao federalismo europeu e à globalização mundialista". O que parece pressupor a necessidade de uma resposta multilateral. No artigo "O caminho pela frente", escrito por Barack Obama e publicado pela revista britânica The Economist, o Presidente norte-americano sublinhava, precisamente, a importância de a América não se fechar sob si própria, procurando respostas unilaterais para problemas que, em certa medida, são globais.

Isolacionismo ou internacionalismo?

Já Carlos Gaspar prefere distinguir as prioridades mediante o hipotético vencedor das eleições de 8 de Novembro. O investigador do Instituto Português de Relações Internacionais (IPRI) considera que Donald Trump dará primazia à política interna e Hillary Clinton, à política externa. Porque Trump acredita que "o declínio americano resulta dos malefícios da globalização e do excesso de responsabilidades que os EUA assumiram como garantes da ordem internacional". Enquanto para Clinton "os EUA têm de consolidar a sua preponderância internacional e manter a sua competitividade em todos os domínios críticos da inovação". Gaspar explica que só assim os EUA conseguirão "responder aos problemas económicos e sociais que pesam na política interna". No texto já citado, Obama sustentava ser crucial encontrar respostas para as "décadas de declínio do crescimento da produtividade e aumento da desigualdade". E definia ser essencial que Washington se mantivesse "comprometida com todas as nações para construir economias mais fortes e mais prósperas para todos".

Mas a vitalidade do centro político dos Estados Unidos é também essencial para que prevaleça este multilateralismo norte-americano, dado ser o "garante do consenso internacionalista entre as elites norte-americanas", explica Carlos Gaspar. Só que este investigador do IPRI alerta para o facto de Trump querer "substituir o consenso internacionalista por uma deriva proteccionista e isolacionista", considerando ser Clinton "a garantia possível da continuidade do consenso centrista e da estabilidade internacional".

Conter a China e dialogar com a Rússia

Depois de oito anos de administração Obama marcados por um certo retraimento ao nível da política externa dos EUA (Europa, Iraque, Afeganistão), Washington deverá ser chamada a reassumir um papel de maior relevo na cena internacional. Isto num momento em que se assiste ao regresso da tensão entre Washington e Moscovo. Depois da anexação unilateral russa da Crimeia e do apoio do Kremlin aos rebeldes pró-russos do Leste da Ucrânia (Donbass), seguiu-se o apoio militar da Rússia ao regime do Presidente sírio Bashar al-Assad. Tudo acções diplomaticamente condenadas pela comunidade internacional. Entretanto, diversas agências de inteligência americanas acusaram o Governo russo de estar por trás dos ataques informáticos que levaram à divulgação de e-mails de Hillary Clinton pela Wikileaks. Por outro lado, o Presidente russo, Vladimir Putin, deslocou mísseis balísticos com capacidade para conter ogivas nucleares para zonas próximas da Polónia e Lituânia e deu luz verde à realização de manobras militares do único porta-aviões da marinha russa.


Tiago Moreira de Sá discorda da ideia de regresso a uma espécie de Guerra Fria, dado "não existir um confronto ideológico entre dois blocos" nem "uma competição entre duas superpotências, porque hoje a Rússia é uma potência regional". Mas admite que "há uma ameaça que vem da Rússia" e que "levou à redefinição de fronteiras no Leste Europeu". Putin "é um nacionalista realista" que, apesar de não querer "reconstruir o império soviético", está a "jogar com o poder que lhe ficou: o militar", diz Nogueira Pinto. Que lembra ter sido a "aproximação da NATO às fronteiras da Rússia a justificar, em grande parte, a ascensão de Putin". Por todas as razões, Moreira de Sá defende que o futuro Presidente terá de estabelecer uma estratégia bifurcada face a Moscovo, de "diálogo, mantendo a porta aberta nas questões em que possa haver acordos (Síria), e de contenção, para mostrar que o mundo ocidental não permitirá que as fronteiras sejam redefinidas através do uso da força (Ucrânia)". Carlos Gaspar encara a guerra síria como o problema "mais urgente e o mais intratável" para o próximo Presidente dos EUA.

Todavia, logo no primeiro mandato de Obama, ainda com Hillary Clinton como secretária de Estado, deu-se um rebalanceamento da política externa americana, do Atlântico para o Pacífico. Estratégia que é para manter, uma vez que configura "uma resposta à ascensão da China", salienta Moreira de Sá, para quem "os EUA passam por um declínio relativo de poder acompanhado da ascensão de adversários". Carlos Gaspar conclui antevendo que "o problema mais complexo, no longo prazo, é mesmo a ascensão da China e a sua integração na ordem internacional". A chegada de Clinton à Casa Branca representaria o reforço do internacionalismo e o respeito pelas alianças estratégicas de Washington. E a vitória de Trump seria o triunfo do isolacionismo e uma incógnita para a NATO e para a actual ordem internacional. Nunca o mundo terá estado tão dependente de uma só eleição.


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