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A internet vai fechar-se?

As regras que impedem os fornecedores de acesso à internet de privilegiarem determinados conteúdos estão a ser revertidas nos Estados Unidos da América. Na Europa, o movimento continua a ser o contrário, o de garantir cada vez mais a neutralidade da rede.

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Em Dezembro, chegou a votação. Na FCC (Federal Communications Commission), supervisor do mercado das comunicações norte-americano, três votos de comissários ligados ao Partido Republicano derrotaram os dois representantes do Partido Democrata para reverter a lei que garantia nos Estados Unidos da América a neutralidade da rede. O mesmo é dizer que as regras, até agora, impediam que os operadores limitassem acesso a sites ou aplicações - ou, em contrapartida, permitissem melhores acessos - consoante as ofertas de tarifário existentes.

Para o presidente da FCC, Ajit Pai, já escolhido em 2017 por Donald Trump para liderar a poderosa agência federal (apesar de ter sido nomeado para o conselho da FCC na Administração de Obama), trata-se de liberalizar a internet. O advogado, que faz a 10 de Janeiro próximo 43 anos, sempre foi referido como inimigo da neutralidade da rede. Ex-trabalhador da gigante Verizon, Pai foi alternando a sua carreira entre o sector privado e o público. A Verizon, claro, é defensora da internet não neutral, ainda que diga estar comprometida com a internet aberta. Mas foi esta operadora que ganhou em tribunal, em 2014, um processo interposto precisamente contra a FCC, depois de esta ter estabelecido em 2010 regras não discriminatórias pelas fornecedoras de serviço de internet (ISP). Há várias posições em confronto. Os operadores são quem mais defende a inexistência de regulação na internet. Já gigantes como Facebook, Netflix, Google, e Twitter temem que tenham de pagar para que os seus sites tenham via aberta no acesso.

O início de um movimento que tem agora novo capítulo. Agora, é a própria FCC que pretende reverter as regras. Apesar de já ter sido votado, não entrou ainda em vigor. E, segundo a Ars Technica, um site de notícias especializado em tecnologia, há ainda que aguardar a publicação por parte da FCC da resolução final, e mesmo depois desta, para produzir efeitos tem pelo menos de esperar 60 dias. A Ars Technica lembra que as regras actuais estabelecidas em 2015 foram votadas a 26 de Fevereiro desse ano, mas só entraram em vigor a 12 de Junho, quase quatro meses mais tarde. O mesmo caminho pode fazer a nova votação.

A FCC justifica a sua posição, no "draft" que foi votado, pela redução de investimento em banda larga em dois anos consecutivos, "o que acontece pela primeira vez fora de uma recessão na era de internet. E novos serviços têm sido adiados ou afundados por um ambiente regulatório que sufoca a inovação", pelo que a nova proposta "promove a inovação futura e o investimento. E mais investimento em infra-estruturas digitais cria empregos, aumenta a concorrência, conduzindo a um acesso à internet melhor, mais rápido e mais barato para todos os americanos, especialmente os que estão nas zonas rurais e em áreas de baixo rendimento". Esta tem sido, aliás, a argumentação dos próprios operadores.

Quanto a eventuais incumprimentos em Portugal das regras da neutralidade da rede, é matéria que está em análise. 

Tal como nas medidas tomadas anteriormente, também agora se espera guerra jurídica, nomeadamente por parte das organizações que defendem a neutralidade da rede. "Podemos apenas lamentar a situação nos EUA, que tem contornos políticos muito específicos daquele país", comenta ao Negócios o advogado Eduardo Santos, um dos promotores da associação nacional D3, criada para a defesa dos direitos e liberdades fundamentais no contexto digital. Ainda que acrescente que esta decisão nos Estados Unidos "veio apenas aumentar os consensos na sociedade - tanto na norte-americana como na europeia - sobre a importância da neutralidade da internet".

O que se passa por cá?

As regras são europeias. Na Europa, adoptou-se a neutralidade da rede em regulamento, no âmbito do TSM (Telecom Single Market, ou mercado único de telecomunicações). De Bruxelas, surgiu o recado: "A neutralidade da rede é crucial para utilizadores e empresas", pois assegura que os europeus "têm acesso aos conteúdos e serviços online que querem sem qualquer discriminação e interferência (como bloqueios ou abrandamento na ligação) pelos ISP", o que se revela "muito importante para todas as start-ups que comercializam os seus produtos e serviços pela internet e precisam de concorrer, de igual forma, com os 'players' maiores". E lembrava que em 2012, antes destas regras, o organismo que junta os reguladores europeus (Berec) concluiu que entre 21% e 36% dos subscritores de internet tinha sido afectados por bloqueios ou gargalos nas aplicações a que tinham acedido.

Mais recentemente, o Berec questionou os reguladores sobre a aplicação da neutralidade da rede nos vários países, concluindo que 23 reguladores a nível europeu, incluindo em Portugal a Anacom, disseram que estão a monitorizar queixas de clientes finais. Ao Negócios, fonte oficial da Anacom garantiu que "eventuais incumprimentos em Portugal das regras da neutralidade da rede, trata-se de matéria que está em análise, não havendo ainda conclusões", mas garante ter "em curso análises às ofertas existentes no mercado".

Suscitou polémica a oferta da Meo, designada SmartNet, que foi referida por um congressista norte-americano como a prova de que em Portugal não existia neutralidade de rede. A Meo refuta a ideia e ao Negócios garante que "cumpre o regulamento europeu relativo à neutralidade da rede, não havendo qualquer distorção do mercado causada pelas suas ofertas comerciais", acrescentando que "o acesso e a utilização de qualquer aplicação ou serviço na internet é permitido por todas as ofertas de acesso à internet da Meo, não sendo necessário aderir a pacotes específicos para poder usufruir de determinadas aplicações". Quanto às ofertas SmartNet, não são mais do que "plafonds" de tráfego "adicionais para determinados conjuntos temáticos de aplicações". A Meo, pela menção feita pelo congressista Ro Khanna, tornou-se mundialmente referida, mas as outras operadoras em Portugal, como a Nos e a Vodafone, também têm ofertas semelhantes. A Vodafone, que tem o Yorn X, diz ao Negócios que "não existe qualquer impedimento legal na disponibilização destas ofertas, que já existem no nosso mercado pelo menos desde 2013", salientando, por outro lado, que "apoia o modelo de internet aberta e acredita que devem ser os clientes, e não as empresas, a decidir o que querem ver e fazer online".

Também a Nos garante ao Negócios que define as suas ofertas "no estrito cumprimento destes princípios [do regulamento europeu], disponibilizando aos seus clientes um portefólio de serviços que procura endereçar as necessidades e preferências dos respectivos segmentos de mercado, mas sem os limitar a uma solução única, que colocaria em causa a diversidade de escolhas a que os clientes têm acesso e, dessa forma, prejudicar os seus direitos".

De facto, há práticas que não são, necessariamente, contrárias à regulamentação europeia, contornando-a. É o caso dos tarifários móveis designado de "zero-rating" (oferece tráfego dentro do preço para determinados serviços ou aplicações) ou os pacotes aditivados (oferecer dados extra para determinados conteúdos). A própria Comissão Europeia admite que práticas como o "'zero-rating' pode, em determinadas circunstâncias, ter efeitos nefastos na concorrência ou no acesso ao mercado a serviços novos e inovadores".

Há pois um papel de actuação por parte dos reguladores nacionais. Para já, não se prevê que a decisão nos Estados Unidos tenha lastro na Europa. Isso mesmo acredita Eduardo Santos: "A legislação europeia sobre neutralidade é de 2015, não nos parece que esteja para breve alguma alteração, que a acontecer, seria provavelmente no sentido de reforçar o conceito de neutralidade legalmente consagrado, de modo a, por exemplo, proibir inequivocamente todas as situações de 'zero-rating'". Uma revisão da matéria é o que, no entanto, preconiza a Nos. "A Nos entende que se justifica uma revisão desta matéria no sentido da flexibilização, tal como aconteceu nos EUA, já que esta será a única forma de assegurar um continuado investimento em infra-estruturas de comunicação capazes de responder às crescentes necessidades e exigências dos utilizadores". 

Para o presidente da D3, "a Europa tem tido a capacidade de prosseguir as suas próprias políticas digitais, mesmo quando as perspectivas europeia e norte-americana são díspares, como tem acontecido, por exemplo, em matéria de protecção dos dados pessoais".


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