Opinião
Racionalização ou racionamento: é urgente estudar o SNS
A ideia de racionamento na despesa pública não deve mergulhar na mesma indiferença com que foram premiados os gastos excessivos que nos levaram ao desastre nas PPP. Em particular no sector da Saúde é urgente que o Estado pare para avaliar o que está a fazer.
Ao longo destes anos a ouvir responsáveis governativos sobre a condução da política orçamental há momentos que ficam na memória. Um deles foi Emanuel dos Santos, enquanto secretário de Estado do Orçamento do PS, a assumir com total naturalidade no Parlamento que as Parcerias Público Privadas (PPP), tão em voga até à crise, serviam essencialmente para fazer obra que o Orçamento não permitia. A outra, ocorreu há poucos dias, curiosamente pelo actual secretário de Estado do Orçamento, Hélder Reis, que numa conferência da Ordem dos Economistas, afirmou que por vezes, na voragem da contenção orçamental, onde "devia haver racionalidade económica, passa a haver racionamento". Um e outro falaram do que sabem, não do que defendem ou acham justo. Simplesmente constataram.
Na altura, as palavras de Emanuel dos Santos chocaram-me por isso mesmo, pela transparência com que a subversão do sistema tinha levado a melhor. As PPP, um modelo com evidentes vantagens numa economia com relações saudáveis entre sector público (que se pode financiar a custos baixos) e privado (que tem know-how), transformou-se num instrumento de desorçamentação, de promoção de investimentos de eficiência duvidosa, de encapotamento de dívida. Hoje, as palavras de Emanuel dos Santos continuam a chocar, mas pela forma como sendo tão claro o que estava a acontecer, um lento embalo político permitiu que pouco ou nada se tenha feito nessa fúria socrática.
Foi desse episódio que me lembrei quando Hélder Reis, em resposta a criticas às opções de cortes transversais na despesa com salários no Estado, admitiu, com a mesma naturalidade que o seu antecessor sobre as PPP, que há momentos de urgência em que, em vez de racionalidade, temos racionamento. O dia continuou e mais nada aconteceu. Mas a ideia de racionamento na despesa pública não deve mergulhar na mesma indiferença com que foram premiados os gastos excessivos que nos levaram ao desastre nas PPP. Em particular no sector da Saúde é urgente que o Estado pare para avaliar o que está a fazer.
Não faltam estudos que apontam para efeitos negativos das crises na saúde, assim como da austeridade sobre a prestação de cuidados. Há prescrições de médicos que batem na caneta do gestor de departamento que raciona em nome da racionalidade económica, e atira ao chão o doente forçando-o a lutar contra o próprio Estado. Muitos se queixam em conversas. Menos, mas frequentes, são as notícias de exames não prescritos, medicamentos riscados, falta de pessoal, falta de equipamentos. É o corte nos consumos intermédios, dizia há uns dias um amigo, num toque de humor negro.
Paulo Macedo, um ministro que passou por esta crise ao comando de uma das áreas que mais cortou na despesa, tem o seu mandato associado a esse sucesso, mesmo sem reformas que se vejam. Isso é pouco, especialmente para um ministro da Saúde. E pode vir a ser chocante. É por isso urgente e é sua obrigação analisar o impacto da austeridade nos resultados e nos serviços prestados pelo SNS. O risco é daqui a uns anos olharmos para trás e percebermos que, afinal, estava tudo tão claro e não fizemos nada.