Opinião
Álvaro, o Nero II da Trafaria
Na madrugada de 24 de Janeiro de 1777, a Trafaria foi vítima de um dos actos mais bárbaros e pouco conhecidos da História de Portugal: cumprindo ordens do Marquês de Pombal, o intendente Pina Manique juntou 300 soldados, atravessou o Tejo e incendiou a Trafaria.
Viviam aqui cerca de cinco mil pessoas, sobretudo pescadores pobres, acusados de albergar umas centenas de jovens em fuga de um recrutamento militar rápido e em força para fazer face à ameaça de invasão espanhola.
Manique cumpriu à risca a missão que o primeiro-ministro de D. José I o incumbira. Muita gente morreu, o território foi reduzido a cinzas e os refractários que escaparam obrigados a ingressar nas fileiras militares. O acontecimento mais marcante desta localidade valeu a Sebastião José de Carvalho e Melo o título de "Nero da Trafaria", dado por Camilo Castelo Branco em "Perfil do Marquês de Pombal".
2013, Fevereiro: de supetão, esquecendo a austeridade e o discurso contra as obras faraónicas, o Governo saca de um velho projecto e faz um "show off" que em tudo fez lembrar Sócrates. Com o ministro Álvaro a comandar as tropas, anunciou-se um novo terminal de contentores na Trafaria e mais uns quantos empreendimentos para as duas margens do Tejo. E assim reincendiou os ânimos do lado de lá, mesmo junto do PSD local.
Um pacote devidamente laçado por um número bonito: mais de mil milhões de euros. Então projecta-se um novo terminal de contentores para a margem sul quando a maior parte da carga contentorizada dirige-se a Norte? Em que dados se baseiam para sustentar o projecto? E como vão ultrapassar os problemas críticos em termos ambientais e de acessibilidades? E como vão acabar com quatro dos cinco terminais na capital, cujas concessões só terminam em 2020, 2021 ou mesmo 2025? Vão pagar indemnizações e desafectar o pessoal? Há ainda o problema do contrato com a Liscont, que acaba em 2042 e está no Tribunal Constitucional.
E então o terminal da Trafaria colocará Lisboa como 15.º porto da Europa em carga movimentada? Como se ter capacidade fosse igual a movimentar, e que o mundo portuário parasse à espera da sua entrada em operação! Se se quer fazer um novo terminal do lado de lá, então, porque não, em Setúbal, que tem espaço e um cais já prontinho? Até calhava bem, pois fala-se da gestão conjunta dos dois portos. Como os governantes que agora fazem "show" não vão estar em funções quando, e se, o projecto avançar, dediquem-se, por agora, a nomear os novos dirigentes das administrações portuárias, a optimizar os portos e a impedir a repetição do crime económico que se cometeu no porto de Lisboa. E a conversa de que 80% do investimento será suportado por investidores privados não vale a ponta de um chavo. "Portugal Logístico", onde estás tu?
*Coordenador do Negócios Porto
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