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08 de Fevereiro de 2017 às 19:45

Centeno mentiu? A semântica dá uma ajuda.

Até lá, há muita semântica. E esta não chega para fazer cair um ministro que António Costa quer muito segurar.

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O tema escolhido pelo Governo foi o Plano Nacional de Reformas, mas a oposição não deixou passar em claro o ponto fraco da Caixa Geral de Depósitos, mais concretamente o eventual compromisso de Mário Centeno de que António Domingues e a sua equipa não teria de apresentar declarações de património junto do Tribunal Constitucional.

O tema nunca havia ficado bem explicado, e ganhou nova importância depois da divulgação, pelo jornal electrónico ECO, de parte da correspondência trocada entre Domingues e Centeno. Estes documentos foram enviados à Assembleia da República no âmbito dos pedidos feitos pela Comissão Parlamentar de Inquérito à CGD, e dão conta da crescente ansiedade de Domingues com a matéria da divulgação ou não do património dos gestores da Caixa. Há, inclusivamente, uma afirmação do antigo CEO do banco público, que indicia um acordo com o Governo nessa matéria: "foi uma das condições acordadas para aceitar o desafio de liderar a gestão da CGD e do mandato para convidar os restantes membros dos órgãos sociais, como de resto o Ministério das Finanças publicamente confirmou." A argumentação é simples e já foi repetida várias vezes, e também nessa missiva de 15 de Novembro: "A não sujeição a este estatuto [do Gestor Público] (...) tem, para além do mais, como consequência a não submissão ao dever de entregar no Tribunal Constitucional a declaração de património e consistia, desde o início, uma premissa essencial para o projecto de recapitalização da CGD na óptica do investidor privado, na medida em que permitia -- como permitiu -- atrair para o projecto uma equipa internacional de profissionais, susceptível de dar as garantias necessárias ao êxito do empreendimento", de acordo com os excertos divulgados pelo ECO.

Ou seja, Domingues faz referência explícita a um acordo: "condições acordadas" é a expressão exacta. E com base nestas informações que, ontem, tanto Assunção Cristas como Luís Montenegro acusaram o ministro das Finanças de ter mentido ao parlamento ao negar esse acordo.

Caso encerrado? Nem por isso.

António Costa saiu naturalmente em defesa do seu ministro, com dois argumentos. O primeiro tem a ver com o compromisso do Governo para com Domingues de alterar o Estatuto do Gestor Público, de forma a retirar a Caixa da sua alçada, e isso foi feito. Ou seja, para Costa, o compromisso em causa era esse, e foi assumido e cumprido. Acontece que, mesmo deixando de estar abrangido pelo Estatuto, há uma lei anterior – que não foi alterada – e que exige que os titulares de cargos públicos, continuando a incluir-se aí os gestores da Caixa, têm de apresentar as declarações de património ao Tribunal Constitucional. Para Costa, o Governo honrou o único compromisso que tinha para com Domingues; se tal não foi suficiente para retirar a obrigação de património aos gestores da CGD, isso já não é problema do Executivo.

Mas há outro argumento, ligado directamente à carta conhecida ontem. É que, como salientou Costa, não há um único documento conhecido que mostre o ministro das Finanças a confirmar um compromisso de que Domingues e a sua equipa não teriam de declarar o património. O que há é António Domingues a dizer que esse acordo existe, sem ser corroborado – ou desmentido – por Mário Centeno.

Mas, voltando atrás, o que disse exactamente Centeno e outros membros do Governo quando foram questionados sobre a existência ou não desse acordo? Várias coisas, mas nenhuma definitiva.

Ricardo Mourinho Félix, enquanto secretário de Estado do Tesouro, afirmou a 19 de Novembro que "não existe nenhum documento escrito" que estabeleça as condições para a ida de António Domingues para a presidência da CGD. "Não assinei nenhum acordo, nenhum acordo aludia a essa questão [...] Este foi um entendimento que se baseou na confiança, pelo que não foi preciso nenhum acordo escrito", disse em entrevista à TSF.

Mário Centeno também foi questionado várias vezes, e de forma directa, sobre o tal acordo. E nunca disse, preto no branco, que nunca havia combinado com Domingues que este não teria de revelar o património ao Tribunal Constitucional. "O compromisso do Governo é que a CGD se manterá um banco público, um banco capitalizado de maneira a desempenhar todo o papel no sistema financeiro, e um banco competitivo", preferiu dizer, a 18 de Novembro. "Esse compromisso foi assumido de forma muito clara, é esse o único compromisso que temos". Ou seja, Centeno não negou de forma cabal que tenha existido um acordo, embora dê a entender que ele não existiu.

Já Costa, forçado hoje pelas perguntas dos deputados, foi peremptório: "o ministro das Finanças não mentiu!". Costa respondeu mais à frente no debate para afirmar que não tira "conclusões sobre a posição do ministro com base em compromissos que terceiros alegam que ele tem, sem que haja qualquer prova de que ele tenha assumido". Ou seja, não é por Domingues dizer que houve um acordo que isso prova que o acordo existisse.

E voltou à questão do Estatuto do Gestor Público, cuja alteração, essa sim, faria parte do acordo. O primeiro-ministro salientou que o Governo fez a sua parte ao tirar a Caixa do âmbito do Estatuto do Gestor Público, mas lembrou que ninguém teve dúvidas sobre a interpretação da aplicação da lei de 83 que obriga os titulares de cargos políticos e equiparados a apresentar no TC a declaração de património.

Voltando ao título deste texto: Centeno mentiu ou não? Na verdade, nunca disse de forma taxativa que havia prometido a Domingues que este não teria de divulgar o património. Pode ser semântica, mas é o suficiente para ser impossível colocar o carimbo da mentira. E António Costa tem razão no argumento de que, para já, não há provas desse suposto acordo.

No espírito de Domingues, na negociação feita com o Estado, o compromisso em relação ao património estava feito e era essencial. Na letra, não sabemos, nem sabemos se há letra que o possa esclarecer.

Talvez se e quando os documentos enviados ao parlamento forem todos divulgados.

Até lá, há muita semântica. E esta não chega para fazer cair um ministro que António Costa quer muito segurar. 

 

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