Opinião
As lições do «Senhor cinco por cento»
A nova vaga de filantropos americanos foi há semanas tema de capa da «The Economist» que associava a foto do fundador da Microsoft ao sugestivo título de «Billantrophy».
A Fundação Gates, reforçada pela contribuição de Warren Buffett, tem um património de 65 mil milhões de dólares para prosseguir a sua acção no apoio aos países pobres no desenvolvimento de vacinas para doenças como a malária ou a luta contra a SIDA.
Na América dos primeiros anos do século XXI, onde o número de milionários se multiplica de forma nunca vista, não se esquece a mensagem de «devolver à sociedade» a riqueza acumulada ao longo da vida. Os dois casos referidos são de excepção, quer pela dimensão da dádiva, quer pelo facto de um milionário (Buffet) prescindir da ligação do legado à eternização do próprio nome, algo que aparece geralmente associado à contribuição caritativa ou mecenática.
Portugal não tem uma tradição filantrópica ao mesmo nível. Poder-se-á dizer que nunca criámos grandes fortunas e que as condições sociais e económicas são diferentes. Mas é sobretudo uma questão cultural, de assumir a responsabilidade individual perante a sociedade e de ruptura da lógica do legado familiar. Argumentos que podem explicar que nos fiquemos sobretudo pela caridadezinha.
A grande excepção nos nossos dias foi a criação da Fundação Champalimaud, com que António Champalimaud surpreendeu os seus contemporâneos.
Mas a verdadeira excepção não é obra de um português e aconteceu, como disse ontem António Barreto, pelo «mais extraordinário golpe de sorte» da história de Portugal.
A Fundação Gulbenkian instalou-se em Portugal pelas vicissitudes dos últimos anos de vida de um arménio, nascido turco, que ficou conhecido pelo cognome de «Senhor cinco por cento», em referência à forma como multiplicou a já vasta fortuna de família com os contratos petrolíferos da sua Iraq Petroelum Company.
Além de saber ganhar dinheiro, Gulbenkian tinha uma outra paixão: gostava do que era belo e tinha os meios para reunir as obras de arte que lhe estimulavam os sentidos e o conhecimento.
Foi a sua colecção que esteve na origem da Fundação. Pela sorte de que fala Barreto, a dádiva de Calouste Gulbenkian está em Portugal há 50 anos e há 50 anos a contribuir para a mudança e a modernização do país.
Foi durante anos o Ministério da Cultura que Portugal não tinha. Criou organismos residentes (a Orquestra e o Ballet, cuja extinção no ano passado foi por certo a decisão mais traumática da existência recente), apoiou os artistas, abriu museus. Levou os livros onde não havia bibliotecas nem dinheiro para os comprar. Apoiou os investigadores dentro e fora de portas, criou o Instituto Gulbenkian de Ciência.
Soube prosseguir os seus fins em prol da ciência, da educação, da arte e da caridade nos anos do Estado Novo e em democracia, adaptando-se à mudança dos tempos e ultrapassando períodos de maior imobilismo.
Talvez a grande lição da Gulbenkian seja o seu carácter de independência e de exigência. Num país onde impera a dependência do Estado e um entediante culto da mediania, é estimulante ouvir as palavras de Gulbenkian, citadas por Rui Vilar: «Only the best is enough for me».
O «Senhor cinco por cento», que deixou uma fundação que chegou a representar mais de 2,5% do PIB português, continua a dar-nos lições.