Opinião
A justiça que não temos
A justiça portuguesa especializou-se em criar montanhas que parem ratos. Lembram-se do início do caso Casa Pia? Falava-se de uma «rede» de pedofilia. Havia a circular listas com dezenas de nomes de supostos implicados. Lá estava muita gente conhecida e po
Hoje, menos de dois anos e muitas peripécias processuais depois, o que é que temos? Não há «rede» nenhuma e o único arguido que continua detido é Carlos Silvino. Coincidência: ele é o que tem menos posses e menos conhecimentos nos vários poderes, entre todos os que estão implicados.
Já tinha sido assim com o caso Moderna, onde se chegou a falar de tráfico de armas e de uma teia de ligações ao poder político.
Com o caso Apito Dourado, já se avançou com supostos financiamentos partidários à margem da lei. Vamos ver o que aquilo dá, depois dos autores da investigação terem sido afastados.
Ou estamos perante a irresponsabilidade de uns quantos, que atiram lama para o ventilador e lançam na praça pública suspeitas imaginárias e não sustentadas, que nunca se provam por não serem verdadeiras. Ou então o sistema está mesmo feito para deixar escapar alguns, de forma selectiva e criteriosa.
O facto é que há uma enorme desproporção entre a dimensão inicial dos casos, o tempo que se consome a discuti-los e, depois, os seus resultados.
O capítulo «cassetes roubadas» do «dossier» Casa Pia ameaça ser mais um desses exemplos.
O país tem leis e códigos deontológicos que regulam a realização de gravações sem conhecimento dos interlocutores, a apropriação indevida de bens de terceiros e a quebra do segredo de justiça.
Não seria difícil que os órgãos próprios investigassem e dissessem de sua justiça sobre cada um desses comportamentos.
Mas uma semana e meia depois, a polémica e as cortinas de fumo já são suficientes para que tudo venha a ficar numas muito portuguesas «águas de bacalhau».
O que impressiona mais é que foi o próprio Procurador-Geral da República quem tratou imediatamente de preparar o país para a previsível falta de sucesso nas investigações de quebra do segredo de justiça. E que, numa lamentável declaração feita ontem, sacudiu energicamente a «água do capote», dizendo que a assessora de imprensa é da PGR e não do seu gabinete.
São os próprios agentes da justiça, e ao mais alto nível, que olham para indícios de crimes que estão aos olhos de todos e os desvalorizam à partida, sustentando que aquilo não vai dar em nada.
Se eles, que supostamente a deviam fazer e garantir, são os primeiros a desacreditar a justiça, como pode o cidadão comum acreditar?
A permanente bagunça criada à volta do caso consome energias e desvia atenções que deviam estar concentradas no essencial: dezenas de crianças foram violentadas durante anos por trás de um muro de silêncio e de uma teia de cumplicidades. Há que encontrar e punir os culpados e reparar nas vítimas o que for reparável. Será isso possível neste país?