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Opinião
03 de Junho de 2018 às 14:00

Os grilhões da dívida voltaram

Os tempos podem ser bons, mas é precisamente nos bons momentos que os riscos se acumulam. Os legisladores não podem dizer que não foram avisados.

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O crescimento global está a acelerar. Mas antes de abrirmos o champanhe, devemos reconhecer os riscos de longo prazo para a expansão sustentada impostos pelo aumento da dívida pública e privada.

 

Os analistas de mercado vêem o aumento do endividamento privado na maioria das economias emergentes e algumas economias desenvolvidas como um sinal de maior procura e de um crescimento mais rápido. Embora isso seja verdade a curto prazo, o aumento implacável da dívida global continua a ser um dos problemas mais sérios que pesam sobre a economia global.

 

Apesar de anos de desalavancagem após a crise financeira global de 2008, a dívida continua muito alta – e apesar disso voltámos agora a um ciclo de crédito expansionista. De acordo com o Banco de Pagamentos Internacionais, a dívida pública e privada não financeira ascende a quase 245% do PIB mundial, tendo subido de 210% antes da crise financeira e cerca de 190% no final de 2001.

 

O endividamento do governo dos Estados Unidos pode chegar a 5% do PIB este ano, elevando a dívida pública total para cerca de 108% do PIB. Na Zona Euro, a dívida pública é de cerca de 85% do PIB; no Japão, está próxima de 240%. Globalmente, a dívida privada não financeira está a crescer mais rapidamente do que o PIB nominal.

 

Essas tendências deverão continuar, já que muitos dos principais bancos centrais - incluindo o Banco Central Europeu e o Banco do Japão - não só saudaram a recuperação do crédito, como até querem estimular mais crescimento financiado pelo crédito. Só a Reserva Federal dos EUA e o Banco Popular da China estão a tomar medidas para conter o crédito bancário.

 

O mundo sofreu crises económicas suficientes para saber que dívidas elevadas criam sérios riscos. A dívida nominal é fixa, mas os preços dos activos podem colapsar, gerando enormes perdas no balanço e fazendo com que os prémios de risco - e, portanto, os custos dos empréstimos - aumentem. Há apenas dez anos, a implosão de um boom financeiro impulsionado pelo crédito levou o sector financeiro para a beira do colapso, e deixou grande parte do mundo mergulhado numa recessão que durou vários anos.

 

A única dívida sustentável é aquela que pode ser gerida mesmo durante desacelerações cíclicas. No entanto, os governos continuam a repetir os mesmos erros, tratando a dívida como um benefício para o crescimento a longo prazo, e não como ela é na verdade: um fardo pesado e uma fonte de enormes riscos a longo prazo.

 

É hora de os legisladores e seus assessores económicos reconhecerem isso e abandonarem a suposição de que mais dívida conduz sempre a mais crescimento. Embora haja momentos em que os governos precisam de aumentar o endividamento para estimular a economia, os gastos deficitários não conseguem elevar o crescimento a longo prazo. E em momentos em que as taxas de crescimento e o endividamento do sector privado estão a aumentar - tempos como agora - os governos deveriam estar a trabalhar para reduzir os seus próprios défices. Isto é relevante para os EUA e o Japão, mas também para os países da União Europeia, que devem aproveitar a recuperação actual - a mais forte da década - para alinhar as suas finanças públicas com o Pacto de Estabilidade e Crescimento.

 

Os governos devem procurar evitar a acumulação de dívida insustentável, estimulando o crescimento de longo prazo, que não seja financiado por dívida, usando uma combinação de regulamentação, acordos comerciais, incentivos ao investimento e reformas na educação e no mercado de trabalho. Num ambiente de inflação baixa como o que existe hoje, os bancos centrais podem amortecer o impacto dessas reformas através de políticas monetárias expansionistas.

 

Mas os bancos centrais devem calibrar cuidadosamente as suas intervenções, para garantir que a expansão monetária não estimula o aumento da alavancagem do sector privado. Isso significa pensar duas vezes antes de impor taxas de depósito negativas, concebidas para pressionar os bancos a emprestar mais, ou operações de liquidez condicionadas ao crédito bancário

 

Uma abordagem melhor enfatizaria o uso da orientação futura para influenciar as expectativas das taxas de juro e as yields das obrigações. Yields baixas podem alimentar aumentos nos preços dos activos e estimular a procura em diversas áreas, não apenas através de uma maior alavancagem corporativa. Dito isto, com os preços dos activos já elevados e as economias a crescerem a um ritmo saudável, os bancos centrais devem seguir a Fed e retirar gradualmente os programas de estímulo que iniciaram após a crise de 2008.

 

Além disso, os reguladores devem fazer mais para garantir que a dívida privada seja canalizada para usos produtivos que ofereçam retornos decentes de longo prazo. Esta é a lição de crises da dívida anteriores, incluindo a bolha das hipotecas subprime que desencadeou o colapso há uma década, com consequências devastadoras para o crescimento e o emprego.

 

Por exemplo, as autoridades reguladoras podem empregar políticas macroprudenciais para impor limites a segmentos dos mercados financeiros que estão a sobreaquecer, melhorando assim a alocação de capital e estabilizando os retornos de investimento. Devem ter um cuidado especial para evitar as bolhas imobiliárias, porque o imobiliário constitui uma enorme parcela da riqueza total e uma das principais fontes de colateral das finanças. Mas o forte aumento dos empréstimos alavancados de baixa qualidade também deve ser uma preocupação.

 

Nada disto será fácil para governos, reguladores ou bancos centrais. O aperto monetário pode retardar temporariamente o crescimento; prevenir o crescimento de bolhas é notoriamente difícil; e as reformas estruturais necessárias para garantir uma mudança do crescimento impulsionado pela dívida quase nunca são populares. O ambiente político febril de hoje não vai facilitar nada as coisas.

 

Mas as consequências de não se fazerem estas escolhas podem ser devastadoras. O ciclo financeiro continuará a ganhar força, fazendo com que os preços dos activos superem os fundamentais por uma ampla margem; os índices de alavancagem subirão ainda mais, e a procura ultrapassará a capacidade, estimulando a inflação.

 

Nesse ponto, um choque externo ou uma decisão dos bancos centrais de aplicar os travões monetários - uma resposta inevitável à crescente exuberância e ao aumento da inflação - levará a um colapso potencialmente ruinoso. Os mercados financeiros, estimulados por baixas taxas de juros e ampla liquidez, sofreriam um grande impacto. A alavancagem privada e os níveis de dívida pública tornar-se-iam repentinamente menos sustentáveis.

 

Os tempos podem ser bons, mas é precisamente nos bons momentos que os riscos se acumulam. Os legisladores não podem dizer que não foram avisados.

 

Michael Heise é economista-chefe da Allianz SE.

 

Copyright: Project Syndicate, 2018.
www.project-syndicate.org
Tradução: Rita Faria

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