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03 de Fevereiro de 2014 às 20:31

A Purga de Pyongyang

Durante a Guerra Fria, o termo "Kremlinologia" era usado para descrever os esforços para perceber o que estava a acontecer nas altas hierarquias da União Soviética – no fundo, tudo o que acontecia por detrás da Cortina de Ferro.

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Os Kremlinólogos controlavam (de todas as formas possíveis) quais os líderes que estavam em cima e em  baixo na principal hierarquia soviética. Atribuía-se grande importância a quem assinava um documento oficial, ou a quem ficava no topo do Túmulo de Lenine na Praça Vermelha a passar em revista as paradas militares.

 

Tudo isso era uma brincadeira de crianças quando comparado com os esforços que são necessários para decifrar o regime da Coreia do Norte, onde a verdade é bem mais opaca.

 

Recordemos o que aconteceu no dia 17 de Dezembro de 2013. Choe Ryong-hae, vice-presidente da Comissão Militar Central do Partido Trabalhista Coreano, estava, sem margem para dúvidas, no palco durante a celebração do segundo aniversário da morte do "Querido Líder", Kim-Jong Il. Era a primeira grande cerimónia desde a purga e execução de Jang Song-thaek, o ex-vice-presidente da Comissão Nacional de Defesa. O discurso de Choe, com ameaças contra os Estados Unidos e a Coreia do Sul, parecia estar a criar as bases para a sua ascensão política.

 

Jang Song-thaek era visto como uma espécie de regente de Kim Jong-un, o jovem successor da dinastia da família Kim, e era visto como o número dois do regime. Mas devia a sua posição à sua mulher, Kim Kyong-hui, a única irmã de Kim Jong-il, o falecido pai de Kim Jong-un.

 

A diplomacia de Jang, assim como a sua utilidade como interlocutor com a China, permitiram-lhe manter a sua posição, apesar de estar separado da mulher há muito tempo. Mas na Coreia do Norte, o sangue é que manda: tudo obedece à manutenção da dinastia Kim, incluindo a ideologia e o interesse nacional. O “legado” do “Grande Líder” Kim Il-sung e o do seu filho, o “Querido Líder” Kim Jong-il, é que determinam todas as grandes decisões.

 

Acreditei durante muito tempo que a verdadeira dona do poder desde a morte de Kim Jong-il era a sua irmã, Kim Kyong-hui, e mais ninguém. A cultura norte-coreana pressupõe que as mulheres não assumem posições de liderança, mas parece que ela era a única pessoa da família em quem Kim Jong-il podia confiar. Quando ele estava incapacitado pela doença, era ela que tomava as decisões.

 

Foi o seu vínculo de sangue à dinastia Kim que explicou o facto de ela ter mantido a sua posição política, mesmo depois de o seu marido ter sido purgado e executado (e o resto da família dele cercada). Até se disse que foi ela que tomou a decisão de eliminar o seu marido. Apesar de não se poder saber se ela também propôs matá-lo, não seria surpreendente que ela acreditasse, à medida que a sua própria saúde ficava cada vez mais frágil, que não poderia deixar a dinastia da família à responsabilidade do marido.

 

O aspecto possivelmente mais assustador da execução de Jang é que parece fazer parte de uma necessidade de alimentar a especulação, que já tirou a vida a vários elementos de topo e generais. E o derramamento de sangue tem sido extremamente pessoal: em Agosto, Kim Jong-un terá ordenado a execução por um pelotão de fuzilamento de uma ex-namorada e do seu grupo de música; diz-se que as mortes ocorreram em frente às respectivas famílias.

 

No resto do mundo comunista, estas purgas assassinas foram abandonadas há muitos anos, primeiro na União Soviética, por Khrushchev, que o fez depois de ter denunciado Estaline, e de seguida na China, por Deng Xiaoping, após reabilitação e regresso ao poder no final dos anos 1970. Esta "reforma" não tornou estes regimes mais benévolos ou eficientes, mas trouxe um grau de estabilidade e previsibilidade ao seu comportamento. A Coreia do Norte, que é sempre o menos previsível dos estados comunistas totalitários, continua a viver no mundo das sombras.

 

Ainda mais preocupante é a dúvida sobre se a China vai seguir pelo mesmo caminho da Coreia do Norte com o presidente Xi Jinping. Desde os tempos de Deng que há um entendimento tácito de que os membros do Politburo do Partido Comunista Chinês são intocáveis, mesmo que já se tenham reformado. Mas sob o pretexto de estar a lutar contra a corrupção, Xi já identificou como alvo Zhou Yongkang, membro do Politburo na reforma, que está alegadamente em prisão domiciliária acusado de suborno – mas igualmente acusado, de forma sensacionalista, de ter matado a sua primeira mulher e de ter tentado matar Xi.

 

A ênfase que a China tem dado, desde a liderança de Deng, a uma governação em consenso pode não ter tornado o país mais democrático, mas pelo menos impediu o aparecimento de um novo culto de personalidade ao estilo de Mao Zedong. A questão, agora, é saber se o desdém que Xi revela por este acordo tácito do partido é mais um passo a caminho da recriação de uma liderança concentrada numa só pessoa na China – que assim seria completamente arbitrária.

 

Claro que na Coreia do Norte, independentemente de quão bizarra ou incapaz, uma liderança arbitrária é sempre a norma. E agora, com Jang eliminado, a responsabilidade pelo falhanço económico da Coreia do Norte foi transferida para Choe. Todas as pessoas que estão ligadas a ele vivem sob o manto do carrasco, porque será certamente ele que vai arcar com as culpas quando a dinastia precisar de um bode expiatório para os seus inúmeros problemas.

 

A eliminação de Jang pode ter aumentado esses problemas. Enquanto a China perdeu um conveniente ponto de contacto com o regime de Kim, a Coreia do Norte pode ter perdido o único canal através do qual se sustentava a si própria. A economia não pode ressurgir enquanto as sanções internacionais se mantiverem, e parece claro que as sanções vão manter-se enquanto o regime continuar com a sua estratégia nuclear. A China, que tem sido a bóia de salvação da dinastia Kim, já não parece mais disposta a assinar cheques em branco.

 

O dia em que Kim Jong-un e o seu clã vão ter de prestar contas pelas miseráveis condições do país está a aproximar-se rapidamente, e pode mesmo chegar logo depois de Kim Kyong-hui morrer. Se assim for, o último capítulo da dinastia Kim pode ter começado com esta série de execuções, apesar de o final – para a Península da Coreia e para a Ásia Oriental – continuar a ser um mistério.

 

Yuriko Koike, ex-ministra da Defesa do Japão e conselheira para a segurança nacional, foi Presidente do Partido Liberal Democrata do Japão e é deputada na Dieta Nacional (Parlamento japonês).

 

Copyright: Project Syndicate, 2014.

www.project-syndicate.org

Tradução: Bruno Simões 

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