Opinião
Obama em Hiroshima
As eternas cicatrizes de Hiroshima serão reconhecidas por Obama para nos lembrar do horror inimaginável infligido pelo ataque nuclear dos Estados Unidos. Mas a visita de Obama também simboliza o reconhecimento compartilhado da necessidade - agora e no futuro – de paz na Ásia e de unidade entre os povos do Japão e Estados Unidos.
Numa altura em que a indecência e vulgaridade de Donald Trump estão a distorcer a visão do mundo sobre a América, a decisão de Barack Obama de se tornar o primeiro presidente dos Estados Unidos a visitar Hiroshima demonstra, mais uma vez, a sua grande dignidade pessoal. Além disso, direcciona a atenção do mundo para um América aberta, voltada para o futuro, que já ofereceu estabilidade e prosperidade nas muitas décadas que passaram desde que a bomba atómica foi usada pela primeira vez.
Vindo a Hiroshima, Obama vai conhecer intimamente a profunda dor de uma nação que já foi inimiga dos Estados Unidos, mas que agora é uma amiga dedicada. Ao olhar para as ruínas do abismo nuclear e ao reconhecer a nossa eterna tristeza, irá confirmar os laços agora inquebráveis que unem os nossos países. E é por causa da aliança entre os Estados Unidos e o Japão que a paz na Ásia e no Pacífico vai resistir, independentemente dos desafios que estejam por vir.
A visita solene de Obama é, portanto, um momento prospectivo para o Japão. No reconhecimento conjunto - do Japão e dos Estados Unidos - dos horrores praticados em Hiroshima e Nagasaki em Agosto de 1945, os dois países - vencedor e vencido da Guerra do Pacífico - vão mostrar ao mundo como se constroem e mantêm laços de aliança e solidariedade.
O surgimento de uma aliança de seis décadas a partir das cinzas de Hiroshima e Nagasaki é uma das muitas realizações quase milagrosas da clarividente diplomacia norte-americana pós-1945. Os Estados Unidos também merecem crédito pela promoção da unidade europeia, que tem assegurado uma paz duradoura entre a França e a Alemanha (depois de três guerras em cem anos); pelo encorajamento da abertura da China para o mundo, e pelo fim pacífico da Guerra Fria.
Gerações sucessivas de líderes americanos e políticos corajosos trouxeram benefícios para o mundo. Em todos esses casos, a América encontrou líderes - mesmo na União Soviética com Mikhail Gorbachev, e na China, com Deng Xiaoping - que foram capazes de transcender o seu próprio passado e preconceitos para construir um mundo melhor e mais seguro.
Em Hiroshima, Obama vai estar de pé ao lado do primeiro-ministro japonês, Shinzo Abe, criando um poderoso elo simbólico para a fundação da aliança entre o Japão e os Estados Unidos e o extraordinário período de visão diplomática que criou a ordem pós-guerra da Ásia. Afinal, Abe é neto de Nobusuke Kishi, o primeiro-ministro que enfrentou uma Dieta Nacional então relutante e defendeu o tratado de aliança com os EUA, sacrificando a sua carreira política para o bem do futuro do Japão e a paz na Ásia.
Apenas 15 anos antes, Kishi – então funcionário do governo japonês imperial, era um dos maiores inimigos dos Estados Unidos na Guerra do Pacífico; mas ele entendeu que a estabilidade do pós-guerra na Ásia exigia uma estrutura verdadeiramente viável de paz. E que essa estrutura só poderia ser criada se o Japão e os Estados Unidos estivessem unidos em solidariedade.
As acções de Kishi, como as de Konrad Adenauer, Charles de Gaulle, Alcide De Gasperi, e outros na Europa no início da integração europeia, demonstram uma das razões pelas quais o sistema internacional do pós-guerra perdurou por tanto tempo: foi construído por estadistas no verdadeiro sentido da palavra. Estes foram líderes cuja visão se estendia muito além da preocupação com as suas próprias carreiras políticas, e que tiveram sabedoria e coragem para agir de acordo com a sua compreensão do que um futuro de paz e prosperidade exigiria.
Grande parte da coragem que demonstraram consistiu na sua vontade de superar as suas histórias pessoais em troca do bem dos seus povos. Kishi e os seus homólogos na Europa e Estados Unidos viram que era possível alcançar um futuro diferente e melhor se recusassem a raiva contra o passado e deixassem de tocar nas feridas, mesmo as feridas radioactivas de Hiroshima e Nagasaki.
As eternas cicatrizes de Hiroshima serão reconhecidas por Obama para nos lembrar do horror inimaginável infligido pelo ataque nuclear dos Estados Unidos. Mas a visita de Obama também simboliza o reconhecimento compartilhado da necessidade - agora e no futuro – de paz na Ásia e de unidade entre os povos do Japão e Estados Unidos.
É assim que a memória histórica deve ser usada, não como uma forma de atiçar a raiva dos cidadãos uns contra os outros, para desviar a sua atenção dos problemas internos, como alguns líderes fazem, mas para mostrar que, na nossa dor, partilhamos uma humanidade comum que exige a nossa lealdade. Essa lealdade deve superar as nossas diferenças de interesses, cultura e, acima de tudo, acções passadas. Só tendo capacidade de partilhar as nossas dores e a nossa humanidade é que qualquer um de nós pode estar diante da morte sagrada de Hiroshima.
Yuriko Koike, antiga ministra da Defesa e assessora de segurança nacional, foi presidente do Conselho Geral do Partido Liberal Democrata do Japão e é, actualmente, membro da Dieta Nacional.
Direitos de Autor: Project Syndicate, 2016.
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Tradução: Rita Faria