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Opinião
03 de Junho de 2015 às 20:09

A máfia do futebol

A única surpresa acerca da detenção de sete dirigentes da FIFA num hotel suíço ao início da manhã de 27 de Maio foi, de facto, ter acontecido. A maioria das pessoas assumia que estes homens mimados, vestidos com fatos caros e que governavam o mundo do futebol, estivessem fora do alcance da lei. Independentemente dos rumores e notícias sobre subornos, fraudes eleitorais ou outras práticas condenáveis, o presidente da FIFA, Joseph "Sepp" Blatter, e os seus colegas e associados sempre pareceram emergir sem qualquer arranhão.

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Até ao momento, 14 homens, incluindo nove actuais ou antigos dirigentes da FIFA (mas não Blatter), foram acusados de delitos de fraude e corrupção nos Estados Unidos, onde os procuradores os acusaram, entre outras coisas, de embolsar 150 milhões de dólares em subornos. E os procuradores suíços estão à procura de acordos sombrios por detrás das decisões de atribuição das competições dos mundiais de futebol de 2018 e 2022 à Rússia e ao Qatar, respectivamente.

 

Existe, naturalmente, uma longa tradição de extorsão nos desportos profissionais. A máfia norte-americana tinha grandes interesses no boxe, por exemplo. E mesmo o, anteriormente, cordial cricket foi manchado pela infiltração de redes de apostas e outros negócios desonestos. A FIFA é somente a mais rica, mais poderosa e mais global de todas as vacas leiteiras.

 

Alguns ligaram a FIFA à máfia e Blatter, nascido numa pequena cidade suíça, foi chamado de "Don Blatterone". O que não é inteiramente justo. De acordo com o que sabemos até agora, não há nenhum assassínio associado à sede da FIFA, em Zurique. Mas o secretismo da organização, a intimidação aos rivais dos que a dirigem e o recurso a favores, subornos e reclamações de dívidas mostram perturbantes paralelos ao mundo do crime organizado.

 

Pode-se, claramente, escolher ver a FIFA como uma organização disfuncional em vez de uma empresa do crime. Mas mesmo neste cenário mais benevolente, muitos dos actos desleais resultam directamente da total falta de transparência daquele organismo. Toda a sua operação é gerida por um grupo coeso de homens (as mulheres não desempenham nenhum papel neste negócio obscuro) que devem respeito ao chefe. 

Isto não começou com Blatter. Foi o seu antecessor, o sinistro brasileiro João Havelange, que transformou a FIFA num império corrupto e vastamente rico ao incorporar mais e mais países em desenvolvimento, cujos votos para os seus chefes eram comprados sob todas as formas lucrativas de acordos de marketing e media.

 

Enormes quantidades de dinheiro de empresas como a Coca-Cola e a Adidas foram inundando o sistema, percorrendo todo o percurso até aos bolsos dos potentados do Terceiro Mundo e, alegadamente, do próprio Havelange. A "Coke" foi o principal patrocinador do Mundial da Argentina em 1978, governada à data por uma brutal junta militar.

 

Blatter não é tão rude como Havelange. Contrariamente ao brasileiro, ele não é associado directamente à máfia. Mas o seu poder também assenta nos votos dos países exteriores à Europa Ocidental, e a sua lealdade também é assegurada pelas promessas de direitos de transmissões televisivas e direitos comerciais. No caso do Qatar, que representa o direito de receber um Mundial com condições climatéricas absolutamente insuportáveis, em estádios precipitadamente construídos e em terríveis condições de trabalho por trabalhadores estrangeiros mal pagos e com poucos direitos. 

 

As queixas de europeus ligeiramente mais exigentes são, geralmente, correspondidas com acusações de neocolonialismo ou mesmo de racismo. Na verdade, isto é o que faz de Blatter um típico homem dos nossos dias. Ele é um impiedoso operário que se apresenta a si próprio como o campeão do mundo em desenvolvimento, protector dos interesses de africanos, asiáticos e sul-americanos contra a arrogância do ocidente.

 

As coisas mudaram desde que os subornáveis homens de países pobres eram pagos para assegurar os interesses políticos ou comerciais do ocidente. Isto ainda ocorre, claro. Mas agora o verdadeiro dinheiro, mais frequentemente do que se pensa, provém de fora do ocidente, da China, do Golfo Pérsico e até mesmo da Rússia.

 

Os homens de negócios, arquitectos, artistas, presidentes de universidades e directores de museus do ocidente – ou qualquer outra pessoa com grandes quantidades de dinheiro para financiar os seus caros projectos – têm agora de lidar com autocratas do mundo não-ocidental. Tal como acontece com os políticos democraticamente eleitos, claro. E alguns – vejam o caso de Tony Blair – transformaram isso numa carreira pós-governamental.

Ceder aos interesses de regimes autoritários e negócios opacos não é um negócio saudável. A aliança contemporânea dos interesses ocidentais – não menos nas artes e edução académica do que nos desportos – com os poderes ricos e não-democráticos envolve compromissos que podem facilmente atingir reputações estabelecidas.

 

Uma forma de desviar a atenção passa por recorrer à velha retórica anti-imperialista da esquerda. Lidar com déspotas e magnatas obscuros já não é venal, mas nobre. Vender a licença de uma universidade ou museu a um Estado do Golfo, construir outro enorme estádio na China, ou construir uma fortuna com base em favores futebolísticos atribuídos à Rússia ou ao Qatar é, progressivamente, anti-racista e um triunfo da fraternidade global e dos valores universais.

 

Este é o aspecto mais irritante da FIFA de Blatter. A corrupção, a compra de votos, a absurda sede de prestígio dos chefes do mundo do futebol internacional, os peitos inchados impregnados de medalhas e condecorações – tudo é considerado normal. O que enerva é a hipocrisia.

 

É inútil lamentar a mudança verificada no poder global e a perda de influência do centro da Europa e dos Estados Unidos. E não podemos prever com precisão as consequências políticas desta alteração. Mas se a triste história da FIFA dá algum tipo de indicação, podemos estar certos de que, seja qual for a forma de governo assumida, o dinheiro continua a mandar. 

 

Ian Buruma é professor de Democracia, Direitos Humanos e Jornalismo no Bard College e autor de "Year Zero: A History of 1945".

 

Direitos de Autor: Project Syndicate, 2015.
www.project-syndicate.org 

Tradução: David Santiago

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