Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião
28 de Janeiro de 2005 às 13:59

Vai um choquezinho?

Já se imaginou o leitor a arregalar o olho à publicidade institucional nos jornais alusiva ao MBA da Nova sob o lema «Venha frequentar o 87.º melhor MBA do Mundo»? E... quem vai leccionar as tais disciplinas obrigatórias - e convém não fazer por menos - d

  • ...

Ainda miúdo, ganhei para a vida uma visceral aversão: tomadas, cabos descarnados, tudo quanto possa ameaçar descarregar mais de uma inofensiva meia dúzia de volts. Aí nasceu também a veneração que nutro por essa fantástica invenção, as Duracell. Não admira portanto que essa nova e fervilhante moda - os «choques» - me deixe o juízo à beira de um apagão.

Ele foi o choque fiscal. O choque da gestão. O choque das celebridades. Mas o que me andava mesmo a pôr em «pele de galinha» era um tal de Choque Tecnológico. Confesso que andava mortinho por lhe marcar o passo. E lá fui até www.ps.pt, em busca do tal papel que o PS acabara de dar à estampa no passado fim de semana.

«Compromisso de Governo para Portugal, 2005-2009».157 páginas - que, à cautela, alguém avisadamente se esqueceu de numerar, assim dificultando essa coisa de uma qualquer futura força de bloqueio se lembrar de fazer citações daqui a uns oito meses. Lá vem com o slogan de fundo: «Voltar a Acreditar». Afinal, a fé é a última coisa que um homem pode ou deve perder. Temos bíblia - pensei. E logo ia ter o privilégio de ser o sétimo - ou praí perto - a lê-la.

A seguir às Duracell, o Acrobat Reader é outra das maravilhas da modernidade. Um «find» permite constatar que a expressão «choque tecnológico» foi evitada no texto. Curioso. Há só uma única referência à palavra «choque». Mas esse é outro, de parentesco «fiscal». E só lá está em alusão a promessas a que alguém se furtou. Até que... lá se desvenda o mistério. O «choque tecnológico» é, agora, o «PlanoTecnológico». Pois é, ele há que zelar pela reputação. E quem preza a honra não vai cá querer conotações com «choques» de má vida.

Trata-se, em versão-relâmpago, de «Um Plano Tecnológico para uma Agenda de Crescimento». Em 17 «bullets»: 1. Apoiar a criação de 200 novas empresas de base tecnológica; 2. Lançar programa de jovens quadros em gestão/inovação para as PME; 3. Repor benefícios fiscais à I&D das empresas; 4. Introduzir o empreendedorismo como matéria obrigatória no ensino; 5. Generalizar o uso da internetnas actividades educativas; 6. Colocar um curso pós-graduado de gestão (MBA) entre os 100 melhores do Mundo; 7. Duplicar os fundos de capital de risco para projectos inovadores; 8. Triplicar o esforço privado em I&D; 9. Duplicar o investimento público em I&D até 1% do PIB; 10. Triplicar o número de patentes registadas; 11. Criar 1000 lugares adicionais para I&D na administração pública; 12. Generalizar o acesso à banda larga a preços competitivos; 13. Tornar obrigatória a prática experimental em disciplinas científicas e técnicas no ensino básico; 14. Afectar 20% das contrapartidas de compras públicas a projectos de I&D; 15. Repor a autonomia financeira das instituições de investigação; 16. Reforçar o programa Ciência Viva; 17. Reformar os Laboratórios do Estado e contratualizar as suas missões.

A lista, extensa ou nem tanto assim, tanto tem de concreto quanto de vácuo. Duplicares para aqui, triplicares para ali, 200 empresas, 1000 empregos. Anoto apenas, para já, que os ilustres cientistas que estavam no estrangeiro e voltaram para Portugal nos últimos meses podem vir a perder as tais bolsas-dos-100-artigos- publicados. Mas isso é compreensível e desculpável. O resto é que já não é bem assim.

Vejamos. Em que consiste «repor a autonomia financeira das instituições de investigação» ou «reformar os laboratórios do Estado»? Untar as mãos dos mesmos de sempre com os milhões da UE que ainda sobrem? Insistir em modelos totalmente falidos de I&D? Alimentar gordamente as bolsas de compadrio e ineficiência que grassam por essas paragens? Subsidiar a publicação de «papers» científicos com cinco autores em revistas de terceira categoria, redigidos em inglês macarrónico e lidos no mundo inteiro por três enfastiados pares de olhos - incluindo referees?

Duplicar o investimento público em I&D, até chegar a 1% do PIB? E quanto nos custará, dentro de um ou dois anos, sustentar as estruturas resultantes desses investimentos e os seus custos correntes de funcionamento, dificilmente financiáveis sem fundos do Estado? Vai o Estado continuar a fazer proliferar estruturas que nada de útil ou reprodutivo poderão gerar, porque condenadas a vegetar à sombra do Orçamento, na mais pura penúria financeira e expostas a todo o género de privações, do papel de fotocópia às facturas de luz e telefone por liquidar?

Depois, é essa doentia obsessão pela quantidade, esse combustível de uma Nação governada através dos labirintos da estatística. Para quê duplicar o investimento público em I&D? Para corrermos o risco de contabilizar o dobro do desperdício que temos já? Por que não, ao invés, gastar bem o que já é gasto, e que não é assim tão pouco? Acaso será que gastar bem está sujeito à lei das economias de escala - Gaste mais, que em média gastará cada vez melhor?

Já se imaginou o leitor a arregalar o olho à publicidade institucional nos jornais alusiva ao MBA da Nova sob o lema «Venha frequentar o 87.º melhor MBA do Mundo»? E... quem vai leccionar as tais disciplinas obrigatórias - e convém não fazer por menos - de empreendedorismo? Empreendedores, é claro! Está-se mesmo a ver. É por isso que todos temos receio do mesmo. E o mesmo é... mais do mesmo.

Sócrates insiste: «Nós podemos fazer melhor». Bom, se ele diz... Que ele vai ganhar, acho que já ninguém duvida, quanto muito faltará saber se abandona o campo em ombros com uma monumental goleada; ou se vai a prolongamento.

Mas talvez o pedinte país que tudo parece suplicar lhe exigisse que, durante o primeiro ano de governação, não saísse da «toca» e bem arrumasse na dispensa cartolas e varinhas-mágicas desta estirpe. Que mergulhasse nos dossiês como quem bem se prepara para a mais exigente prova de mérito, ao jeito de um «tudo ou nada». Que se auto-contivesse, bem assim como os seus acólitos, de se pavonear pelo país em inaugurações, aberturas e encerramentos de congressos e outros fretes a lóbis e interesses. Que se abstivesse de fretar as televisões para as oito da noite. Que sabiamente ouvisse, sem onerar interesses públicos.

E que se rodeasse dos melhores, e em número suficiente. Desses para quem a vida pública tem que ser decente e guiar-se por princípios. Separando do genuíno trigo essa horda de sanguessugas e abutres ávidos de fulminantes voos picados sobre governantes que só superficialmente, se tanto, conhecem os assuntos sobre que têm que decidir. Desde a primeira hora. Porque quando se deixa para mais tarde, chega-se, quase sempre, irremediavelmente tarde.

Será pedir demais? Ou será que a precipitação, o improviso, as gaffes e outras façanhas de aprendizes de feiticeiro continuarão a fazer a letra das actas da governação? Daí a minha aversão ao «choque» - perdão, Plano Tecnológico. Benefício da dúvida? Todas as dúvidas!

Mais artigos do Autor
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio