Opinião
Urgente há décadas
Na década de 70, um vivia como clandestino, perseguido pela ditadura militar numa cidadezinha discreta no interior do estado brasileiro do Paraná.
Outro aparecia todos os dias na televisão, como advogado do povo, defensor dos fracos, voz dos que não têm voz, no programa «O Povo na TV», precursor de tudo o que hoje se vê em termos de populismo televisivo no Brasil. Um de esquerda, outro de direita (seja lá o que isso signifique), estavam em campos opostos na batalha que, em 1992, acabou por levar Fernando Collor de Mello à renúncia. Encontraram-se no Governo Lula. José Dirceu - o de esquerda - tenta defender-se; Roberto Jefferson - o de direita -, atacado, ataca. Estarão frente a frente hoje, no depoimento que Dirceu fará na comissão que avalia a possibilidade de expulsão de Jefferson da Câmara dos Deputados, na sequência do escândalo do «Mensalão».
Foi pelos próprios pés que essas duas personagens, à partida tão diferentes entre si, fizeram os caminhos que as levam hoje àquela sala da Câmara dos Deputados. Mas, mais importante do que o que dizem sobre os próprios, é o que as trajectórias individuais de José Dirceu e Roberto Jefferson dizem sobre os caminhos trilhados pela democracia brasileira.
À primeira vista pode parecer estranho que os mais fiéis e empenhados defensores de Fernando Collor de Mello (o PTB - partido Trabalhista Brasileiro - e Roberto Jefferson - deputado do PTB e aplicado integrante, até ao fim, da chamada «tropa de choque» de Collor) se viessem a tornar aliados do PT (Partido dos Trabalhadores), reconhecidamente o mais implacável algoz do ex-presidente. Mas o Brasil onde isso acontece é o mesmo que, há duas décadas, escolheu para vice-presidente da candidatura oposicionista de Tancredo Neves aquele que, dias antes, era presidente do partido da ditadura militar, José Sarney (hoje, também aliado de Lula, por sinal). De resto, a tradição vem de longe, ou não foi D. Pedro, herdeiro do colonizador, que declarou a independência da colónia para, logo a seguir, vir disputar a coroa da ex-metrópole? O poder dirime antagonismos e, se o sistema o permitir e o poder o exigir, os mais figadais inimigos tornam-se amigos de infância em dois tempos - ou vice-versa.
E o sistema político brasileiro permite. Os partidos políticos no Brasil não são muito mais do que agências de emprego parlamentar. Os candidatos precisam dos partidos para se elegerem, mas recebem os votos nominalmente (no Brasil vota-se no Fulano ou no Beltrano, não em listas partidárias) e, quando eleitos, sentem-se - e com alguma razão - donos do mandato conquistado. E nada os impede de mudar de partido. E alguns o fazem com o à vontade de quem troca de camisa. O parlamento brasileiro não é, portanto, um conjunto de forças políticas estáveis, mas um amontoado de interesses mais ou menos corporativos, mais ou menos individuais, mais ou menos legítimos, a depender, quase exclusivamente, do carácter e do humor de cada um dos 513 deputados e 81 senadores, que tanto podem estar a favor quanto contra; hoje a favor, amanhã contra; gratuitamente contra, mediante módica quantia a favor.
O PT passou os últimos 20 anos a prometer mudar a cultura política do Brasil. Uma vez alçado ao poder, seja por incompetência, seja por conveniência - ou, mais provavelmente, por incompetência de uns e por conveniência de outros dos seus membros - o PT repetiu todos os que o têm antecedido no adiamento perpétuo daquela que é, há décadas, a mais urgente reforma brasileira - a do sistema político.
PS: Carros, rua!