Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião
20 de Março de 2009 às 11:48

Três meses em Washington (V)

Achamos normal que uma das mais extraordinárias novas vozes femininas da música africana tenha nascido em Portugal, tenha visitado Cabo Verde só depois dos 30 anos e tenha aprendido a falar crioulo já adulta. Ou que outra...

  • 5
  • ...
Achamos normal que uma das mais extraordinárias novas vozes femininas da música africana tenha nascido em Portugal, tenha visitado Cabo Verde só depois dos 30 anos e tenha aprendido a falar crioulo já adulta. Ou que outra fantástica nova voz africana - por coincidência, também nomeada para os prémios World Music da BBC como o caso anterior -, tenha sido educada por portugueses e visitado Cabo Verde pela primeira vez só na adolescência. E que a mais importante e maravilhosa voz masculina de Cabo Verde faça de Lisboa a sua casa, aqui educando os seus filhos e organizando a sua vida. E que um dos mais fascinantes escritores angolanos adopte Lisboa como sua casa e se confesse tão influenciado pelo Brasil como por Eça de Queiroz. E que o mais genial escritor de canções brasileiro faça um esforço para cantar fados, homenageie Amália e imite o sotaque luso. E achamos normal que o vencedor do campeonato nacional de futebol seja tão comemorado em Lisboa ou no Porto como nas ruas de Luanda ou de Maputo. E que lá bem no fim da Ilha de Luanda se coma um excelente cabrito assado à padeiro. E que nos sintamos em casa nessas cidades; que nos façam sentir em casa. E achamos normal que os angolanos com dinheiro comprem casa em Lisboa, adoptando-a, para si e para os seus filhos, como segunda cidade, em prejuízo - até quando ? - do Rio de Janeiro, de Paris ou Londres. Achamos normal tudo isto, e tantas mais, porque os portugueses têm esta encantadora tendência de achar normais coisas extraordinárias e de se encantarem com banalidades.

Foi certamente sem grande mérito dos portugueses - que na verdade até sentem uma fina irritação com o dinheiro que os angolanos gastam em Lisboa, com o lugar que ocupam os grandes artistas, poetas e escritores africanos que adoptaram Portugal como a sua casa e com o Caetano Veloso a tentar cantar o fado e a imitar o nosso sotaque - que se construiu esta realidade crioula que faz com que tantos estrangeiros nos enriqueçam com a sua presença e nos transformem numa plataforma atlântica. Pouco plantamos e muito colhemos. E agora, de duas uma - ou arrepiamos caminho e passamos a valorizar esta "velvichia mirabilis" que, sem sabermos como, cresceu no chão do nosso deserto ou haverá outros que o saberão fazer, até porque têm uma tradição cultural bem mais integradora que a nossa.

A nossa realidade é única. Dei bem conta disso quando ouvi a terceira história em pouco tempo de um negro americano que não tem, pura e simplesmente, raízes - que não faz ideia se é do Senegal ou do Gana, do Benin ou do Mali. E ficaríamos surpreendidos se soubéssemos quão comum é no continente americano o relato da novela de Alex Haley. Este desenraizamento dos "African Descendents", aliado à natureza supremacista da cultura norte-americana, impede o extraordinário efeito de integração que vivemos em Portugal e cria uma de duas realidades - ou um efeito de anexação, que faz com que muitos negros africanos de segunda ou terceira geração não tenham qualquer raiz que não a americana; ou um efeito de segregação que afasta todos aqueles que criam verdadeiros guetos na sociedade americana. E por isso a questão racial ganha aqui contornos completamente diferentes e bem mais crus.

E é também por isso que nem um tolo achará que a eleição de Barack Obama para a presidência dos Estados Unidos marcou o final de um tempo em que os temas raciais são, neste país, importantes e centrais. Não é, de facto, assim. Se é verdade que os últimos cinquenta anos alteraram perceptivelmente a forma como a sociedade americana encara o tema da raça, não é menos verdade que os temas raciais estão ainda presentes no dia a dia dos Estados Unidos de uma forma muito marcada e que é difícil acreditar que esteja próximo o dia em que essa página seja dificilmente virada. Ainda para mais quando está tão próximo o tempo em que a raça dividia juridicamente a sociedade e o mundo das oportunidades. Ainda estão vivos os segregados e os segregadores. Esquecemo-nos com facilidade que a filmagem que vemos habitualmente de nove alunos a entrar na Central High School de Little Rock escoltados por tropas federais é de 1957 e que a outra filmagem de James Meredith, escoltado por 12.000 tropas federais, a entrar na Universidade do Mississippi, é de 1962; esquecemo-nos que até 1965 se mantinham em vigor regras de acesso dos negros aos cinemas, transportes públicos, piscinas e outras instalações públicas; esquecemo-nos que só em 1967 foram eleitos os primeiros negros em eleições municipais; esquecemo-nos que só no final dos anos 60 acabaram as "all black schools". Tudo isto, e tantos mais episódios, ocorreram ainda no outro dia e as suas marcas ainda estão presentes na sociedade americana.

Não que os nossos problemas com a cor da pele não existam - existem, são sérios, cínicos, instalaram-se numa geração que ainda conviveu com a realidade colonial e em sectores marginais da sociedade portuguesa e devem ser combatidos. Mas são outros. E eu, pela minha parte, prefiro uma nação crioula.


Advogado
jbp@plmj.pt
Assina esta coluna quinzenalmente à sexta-feira

Ver comentários
Mais artigos do Autor
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio