Outros sites Medialivre
Notícias em Destaque
Opinião
01 de Outubro de 2004 às 13:59

Sobre a «esquerda moderna»

Com uma ironia de que o julgava incapaz, Miguel Relvas, secretário- geral do PSD, elogiou a capacidade da JSD de ter gerado o novo guia do Partido Socialista. Outros desenvoltos preopinantes da Direita aplaudiram, com desvelado alvoroço, a ascensão do eng

  • ...

Ninguém está amarrado ao próprio passado; porém, a marca d’água permanece para sempre. Sócrates é o que tem sido: um social-democrata de direita, destinado a ser um excelente gestor do capitalismo. Nada contra as escolhas de cada um, desde que as não embaciem e misturem. As eleições recentes no PS incitam-nos a considerar a especificidade das formações sociais que se impõem naquele partido, e a força manipuladora do «aparelho». Mas a personagem é a representação típica do «político» actual: fato Armani, sapatos Gucci, gravatas Fendi. Apenas. Nada de bom se augura.

No debate a três, Sócrates, de sobrolho franzido, fustigou os outros dois por nem «sequer terem feito um único elogio a Guterres». Heresia medonha: o deus das pequenas coisas é intocável. Todavia, o mesmo recriminador não exprimiu a mais escassa amabilidade a Ferro Rodrigues, o dirigente-charneira que aguentou o partido na tormenta, e obteve a maior vitória eleitoral até hoje conquistada pelo PS. Não tenho por hábito erigir a coincidência como razão, mas há razões que a coincidência não despreza.

José Sócrates ganhou e não há torções que minimizem a evidência. Para a marcha ascensional beneficia de outro factor: da debilidade dramática do Governo, cuja incompetência e burrice incomodam os mais enfeudados, excepção feita ao inaudito Luís Delgado. Sócrates caminha para o cadeirão do poder, e tudo indica que vai oferecer aos grandes interesses económicos o fundamento «de Esquerda» de que carecem. Basta ler a moção apresentada aos íncolas para se perceber o que o novo condutor do PS ambiciona: alternar sem alterar.

Os estados d’alma inexistem. A consciência moral e a ética política esboroam-se na «modernidade» de uma proposta que procede à combustão da ideologia, e vai ao sótão recuperar anacrónicos estribilhos, caídos em desuso desde a década de 30 do século XX. Examinando a questão ao nível político, cedo somos advertidos de que neste teatro de sombras se esboça, somente, o exercício do poder pelo poder, numa totalidade que se constitui a partir de relações progressivas com grandes grupos económicos. Sócrates é a inspiração e a vontade de uma ordem social cuja natureza comporta a negação irrestrita do Estado-Providência, e a absorção, pelos privados, das instituições por ele historicamente apoiadas. Eis a «Esquerda Moderna», segundo a criatura.

As modalidades diversas desta estratégia não se confundem. E seria ridículo ou ingénuo admitir que o seu desenvolvimento obedece a impulsos momentâneos. O estudo das condições que provocam os movimentos económicos determinam as acções políticas. E, hoje, os «políticos» dispõem de lacónica autonomia. A manietação do Governo compromete o funcionamento dos mecanismos do Estado. Assim, o Estado é o alvo principal dos grandes interesses económicos.

Quando emerge, deste tenebroso pântano, alguém com projectos susceptíveis de inverter a tendência de domínio do económico sobre todos os sectores da sociedade, a sua existência política constitui uma ameaça. Eduardo Ferro Rodrigues pagou caro o preço de respeitar compromissos programáticos e de manifestar uma forte expressão de Esquerda. Não creio que José Sócrates seja acusado de semelhante sacrilégio.

APOSTILA – Francisco Sarsfield Cabral é pessoa de bom trato, cortês, autor de estimáveis redacções, habitualmente insertas no lerdo e sisudo «Diário de Notícias». Na última segunda-feira, entre discreta aflição pela vitória do capitalismo, «que não quer saber de imperativos éticos», e de compreensão pela «opção do PS», procede a um indescritível desatino. Misturar Marx com Lenine, Estaline, Trotsky e Mao, e chamar-lhes, sem excepções, «fósseis ideológicos» é uma indignidade intelectual. Marx é lido, estudado e analisado nas mais importantes universidades do mundo, desde Harvard a Cambridge, de Oxford à Sorbonne, da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, à Universidade de São Paulo. Alguns dos maiores pensadores actuais continuam a estudar, ou a ser influenciados pela obra do autor de «O Capital».

Mais artigos do Autor
Ver mais
Outras Notícias
Publicidade
C•Studio