Opinião
Ramalho Eanes e a República
A realidade da História é, amiúde, muito mais prosaica do que nos pretendem fazer crer. E todos os seus protagonistas percorrem trajectórias irregulares, a justificar alguns equívocos pessoais, determinados por ambições, impreparação, contingências de épo
Numa excelente entrevista a José Pedro Castanheira, publicada na revista "Única", do último "Expresso", o general António Ramalho Eanes retoma, de certa forma, as teses de Tucídides, defendendo o princípio do movimento, digamos, social, antagónicas das de Heródoto, as quais indicavam o indivíduo como motor da História.
O padrão do poder define-o Eanes como uma demarcação ética. E o tom geral da entrevista mantém esse registo, sem nunca deixar de assumir um ponto de vista muito crítico, relativamente a acontecimentos e a figuras que marcaram a nossa História próxima presente. O poder é algo que pertence ao povo, assevera, por frases suas. As análises feitas à acção de Ramalho Eanes pecaram, quase sempre, por excesso de infantilidade e intuição deformada. E esta entrevista (que não teve o eco merecido, numa Imprensa cada vez mais preguiçosa e asténica) testemunha, de novo, uma espécie de confrontação serena e grave que o ex-Presidente da República estabelece consigo próprio, na procura do encontro com o outro. Com este homem de grande formato moral acontece o mesmo que a outros (cada vez mais raros) do mesmo jaez e estirpe: sendo de diálogo é um perpétuo solitário.
Teve um projecto de poder? Naturalmente. Todos e cada um de nós, à nossa maneira e com os utensílios culturais, políticos, intelectuais que nos são comuns, temos, ou tivemos um projecto de poder. Eanes nasce politicamente num tempo muito marcado pelas ideologias. Havia um dissentimento de linguagens que as circunstâncias obrigavam a tomadas de posição radicais. O conflito generalizava-se numa violenta luta de classes, que pulverizavam os pontos de vista tradicionais e comuns. E, creio-o hoje, o 25 de Novembro de 1975 não corresponde à dialéctica entre heroísmo e consentimento, entre democracia e revolução. A existência de numerosas zonas em branco sobre as características desse momento crucial não permite uma clarificação definitiva.
E o papel de Ramalho Eanes não consistiu, somente, em obstar ao desenvolvimento revolucionário do 25 de Abril. Ele foi, também, e talvez sobretudo, um daqueles que, na sombra, travou o revanchismo de Direita, garantindo a transição para um sistema democrático que se moldasse aos desejos saídos de uma dramática ruptura histórica. O compromisso com o Grupo dos Nove impulsiona-o para o campo da ideologia, procurando orientar-se entre a social-democracia e a democracia-cristã. A sua exigência crítica escora-se no facto de não ser impulsivo nem temperamental; um carácter reservado a ocultar um espírito curioso e atento aos sinais. E a sua grandeza consiste em ter, durante três décadas, atribuído ao estudo, à reflexão e à análise das questões do nosso tempo a parte mais estelar da sua vida, sobrepujando as limitações próprias de quem escolhera outro destino.
Conheci Ramalho Eanes em 1977, durante as comemorações do 10 de Junho, na Guarda. Jorge de Sena proferiu um discurso empolgante. O meu velho amigo percebera, rapidamente, que o modelo apologético dos partidos iria cindir o País por muitos e dolorosos anos. Creio que o extraordinário texto e a forte personalidade do grande poeta influenciaram o então jovem Presidente da República. Assim como, posteriormente, Miguel Torga, António Reis (o cineasta e poeta), Natália Correia, Eduardo Lourenço, José Rabaça, muitos outros mais. Eanes procurava respostas para as interpelações que reivindicava para si e para Portugal.
Viajei, depois, e por várias vezes, em serviço profissional, com este homem aparentemente circunspecto e extremamente afectuoso. Presenciei a sua coragem física e a sua força moral. Assisti ao desenvolvimento da cultura acumulada; à elegância com que desaconselhava excessivos zelos dos assessores; ao respeito manifestado pelo árduo trabalho dos jornalistas; à refinada ironia de muitos dos seus comentários; e à modesta e paciente benevolência com que recebia comentários cavilosos ou, até, injuriosos. Um homem que nunca traiu. Um homem muitas vezes traído.
A decepção causada pelas derivas do País suscitou nele a ideia de patrocinar um partido que se subtraísse das ideias tópicas costumeiras. Eanes desejava que a política contivesse, no bojo, uma forte componente ética. Falhou. Ou falharam por ele. Mas eu não vou na conversa, estatuída como evidência, de que Ramalho Eanes era contra os partidos. Era, sim, contra a ausência de princípios, contra a inexistência de padrões morais, contra a falta de palavra. Desde que pessoalmente o conheço, a existência de Eanes tem-se modelado por um rigor que estimula os esforços, presentes e vivos, de se exercer a política com espírito de missão.
A entrevista à "Única" diz muito daquilo que ele é. Mas diz pouco do acto circunstancial de um militar a quem o poder não provocou nenhuma espécie de aturdimento. A República não aproveita os seus conhecimentos. A República, esta, vive de fogachos, das pequenas estratégias de glória, de editorialistas sem perigo e sem consistência, de escritores flatulentos, de jornalistas sem brio e sem honra, de políticos medíocres e ignaros – e de uma falta de gosto de decência e de gramática absolutamente insuperável.
Pobre República, esta.
APOSTILA – O concerto, no Pavilhão Atlântico, promovido pela Associação Portuguesa contra a Leucemia constituiu não só um admirável acontecimento artístico como um grande acto de emoção e de solidariedade. Na sua origem está Domingos Duarte Lima, cuja generosidade não só reflecte a grandeza do seu coração como demonstra o esforço de um homem para o qual os obstáculos só servem para ser superados. Pela terceira vez, o maestro e tenor argentino José Cura foi o eixo de um espectáculo inesquecível, em que actuaram, entre outros, Luz Casal, Rui Veloso e Luís Represas, e a Orquestra Sinfónica Nacional. A belíssima actividade da Associação, o infatigável e persistente trabalho de Duarte Lima, a disponibilidade de José Cura e de numerosos artistas portugueses e estrangeiros têm permitido que a realização destes espectáculos despertem a atenção dos mais negligentes. Assim, graças à Associação, o número de dadores de medula óssea, fundamental no combate às doenças leucémicas, está em quase cinquenta mil, quando, há quatro anos, era de dois mil. É meu dever assinalar o facto, sem omissões ou rasuras, a fim de lhe não furtar a dimensão do significado.