Opinião
"O Ódio"
Não há teoria da conspiração - estamos tão só a partir do perigoso princípio de que vamos viver para sempre em democracia
Não há teoria da conspiração - estamos tão só a partir do perigoso princípio de que vamos viver para sempre em democracia; como se a memória, mesmo que universalmente trágica, fosse dinástica. Iludidos pela liquidez perene, na frivolidade festivo-tecnológica das redes sociais, nos "netbased" gadgets ou no absentismo social e cívico (que confundimos com liberdade individual), achamos que o sistema de autoresponsabilização que herdámos se sustém e se desenvolve a partir do seu mero usufruto ou consumo. O populismo, germinado nas nossas inseguranças e medos primitivos, é a má moeda: onde deveria pautar a responsabilização individual, exibe-se, cobardemente, a culpabilização das massas anónimas. Os eleitores perdem a sua real soberania, à medida que a desqualificação da classe política, numa consequência directa da perversão que é o fomento da dita proximidade "pessoal" entre "candidatos" e "populações", governa imatura e perigosamente convencida de que o resultado eleitoral consagrou a prevalência de um hipotético grupo sobre o outro, como nos animais a "selecção natural".
O mal não escolhe sítios nem escalas. Há o xerife do Arizona (numa América onde 30% dos cidadãos ainda estão convencidos que o presidente é muçulmano), um "segurança" dos sonhos e ficções omnipotentes inimagináveis da 2ª Emenda e das reuniões do Tea Party Movement, que interroga e revista mexicanos (que pagam a segurança social mas dela não usufruem) só porque "parecem" mexicanos; há o edil do Porto (onde metade da cidade não vota há anos e um presidente se elege com maioria absoluta com meros 65 a 70 mil votos) que, por causa de duas famílias criminalmente reputadas, imputáveis e perfeitamente identificadas que traficam no Bairro do Aleixo, se prepara para demolir o lar de centenas de famílias e milhares de pessoas, num negócio imobiliário puro e duro com uma empresa do Grupo Espírito Santo, paciente e proficientemente disfarçado de questão de segurança local - espera-se que os toxicodependentes se deixem soterrar nos escombros com vista para o Douro, e que os traficantes se entreguem, atemorizados, como nos filmes do "faroeste"...
Mais a leste, onde as consequências das decisões têm real peso muito para fora dos limites geopolíticos dos líderes que as tomam, na "república inspiração" da Liberdade, Igualdade e Fraternidade, Nicolas Sarkozy expulsa ciganos porque são ciganos. Com algum cinismo estratégico, poderíamos lembrar que, antes de presidente, actuou precisamente nas áreas onde se concentram quase todas as demagogias e promessas de segurança modernas: as Finanças e a Administração Interna, e que aí, combatendo a racaille e a despesa, fez "a escola". Mas bastaria ler George Soros no "Público" desta semana, para perceber que uma boa parte de tudo isto tem que ver com a tentação colectiva do "caminho de menor resistência", que é o da facilidade com que se culpam terceiros, mesmo quando o valor económico da sua integração enquanto cidadãos é uma evidência, e que a fome que os leva a roubar venha do pão que não entra na boca e não do sangue que lhes corre nas veias. Algures por entre tal pragmatismo lúcido, será possível perceber que o chauvinismo, entre muitos e negros atributos, tem a função fundamental de disfarçar os nosso próprios defeitos, incapacidades e impotências.
Em 1995, Mathieu Kassowitz, cineasta francês nascido em Paris filho de pai húngaro - ascendência que partilha com o actual Presidente francês - escrevia e realizava "La Haine" ("O Ódio"). Com Vincent Cassel num dos principais papéis, o também realizador do antípoda "O fabuloso destino de Amélie", rompia com a tradição pedagógico-saudosista das temáticas sociais, fazendo-nos imergir na desconcertação do ódio, na fatalidade da classe, na condenação pela origem, na brutalidade, no apocalipse adivinhado dos subúrbios da capital Francesa. O cinema francês mudava de geração num sobressalto.
Enquanto centenas de milhares de portugueses e seus descendentes entretanto lá nascidos, regressam neste final de Agosto a essa "outra casa", reeditando os movimentos de massas com que se fez a génese paneuropeia - felizmente para muitos deles, já sem "mala de cartão" - espero que tenham matado por cá as saudades, junto a nós, que fomos poupados às crueldades da deslocalização.
E que nunca tenham de se cruzar com o ódio.
O mal não escolhe sítios nem escalas. Há o xerife do Arizona (numa América onde 30% dos cidadãos ainda estão convencidos que o presidente é muçulmano), um "segurança" dos sonhos e ficções omnipotentes inimagináveis da 2ª Emenda e das reuniões do Tea Party Movement, que interroga e revista mexicanos (que pagam a segurança social mas dela não usufruem) só porque "parecem" mexicanos; há o edil do Porto (onde metade da cidade não vota há anos e um presidente se elege com maioria absoluta com meros 65 a 70 mil votos) que, por causa de duas famílias criminalmente reputadas, imputáveis e perfeitamente identificadas que traficam no Bairro do Aleixo, se prepara para demolir o lar de centenas de famílias e milhares de pessoas, num negócio imobiliário puro e duro com uma empresa do Grupo Espírito Santo, paciente e proficientemente disfarçado de questão de segurança local - espera-se que os toxicodependentes se deixem soterrar nos escombros com vista para o Douro, e que os traficantes se entreguem, atemorizados, como nos filmes do "faroeste"...
Em 1995, Mathieu Kassowitz, cineasta francês nascido em Paris filho de pai húngaro - ascendência que partilha com o actual Presidente francês - escrevia e realizava "La Haine" ("O Ódio"). Com Vincent Cassel num dos principais papéis, o também realizador do antípoda "O fabuloso destino de Amélie", rompia com a tradição pedagógico-saudosista das temáticas sociais, fazendo-nos imergir na desconcertação do ódio, na fatalidade da classe, na condenação pela origem, na brutalidade, no apocalipse adivinhado dos subúrbios da capital Francesa. O cinema francês mudava de geração num sobressalto.
Enquanto centenas de milhares de portugueses e seus descendentes entretanto lá nascidos, regressam neste final de Agosto a essa "outra casa", reeditando os movimentos de massas com que se fez a génese paneuropeia - felizmente para muitos deles, já sem "mala de cartão" - espero que tenham matado por cá as saudades, junto a nós, que fomos poupados às crueldades da deslocalização.
E que nunca tenham de se cruzar com o ódio.