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01 de Setembro de 2003 às 10:42

Quem tramou um colapso fiscal?

Governo e ministra das Finanças terão de tirar consequências políticas do colapso fiscal. Se assim não for, ficaremos instruídos. A máquina fiscal terá passado a ser considerada uma irrelevância e a impunidade será a lei.

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Pouco depois da actual ministra das Finanças ter chegado ao Terreiro do Paço, quando questionada sobre que medidas tinha em mente para fazer face a um dos maiores buracos da economia portuguesa – a aparentemente irremovível fraude e evasão fiscais –, disse que já tinha começado a cuidar do problema, atacando o principal: mudou a cúpula da Direcção Geral de Contribuição e Impostos (DGCI).

Um ano e pouco depois, o que sempre foi tido por um grave problema, com consequências que vão muito para lá da esfera estritamente económica – uma vez que envolve a forma como o país descuida de si nas práticas dissolutas dos seus cidadãos, neste caso na qualidade de contribuintes –, tornou-se um motivo de verdadeiro alarme.

Cálculos vários apontam, face à execução orçamental dos primeiros sete meses, para que a perda de impostos se salde este ano, relativamente ao esperado, pela quantia colossal de 2.000 a 2.500 milhões de euros.

Tudo sugere que uma fatia considerável dessas perdas exceda o efeito de um erro, esse já de si também imputável, pelo menos em parte, às Finanças: uma estimativa demasiado generosa das receitas fiscais geráveis na economia. Ou seja, um cenário macroeconómico completamente desajustado da realidade recessiva que estamos a viver, já com fortes prenúncios de que viria a acontecer, em meados do ano passado, aquando da elaboração do actual Orçamento.

Que se saiba, além de mudar o director da DGCI, com maior ou menor relação com a fraude fiscal, a ministra fez o seguinte: aumentou brutalmente a base colectável dos Pagamentos Especiais por Conta em nome desse combate, mas enredou-se em ziguezagues incompreensíveis na aplicação da norma, de que o episódio mais conhecido foi a maleabilidade introduzida para o caso de quem mais berrou: os taxistas; liquidou a Administração Geral Tributária, criada como estrutura paralela por Sousa Franco para impor alguma ordem na máquina fiscal, na enxurrada que levou à extinção de institutos, numa lista descosida de organismos a abater em nome da consolidação orçamental; em nome ainda da consolidação orçamental, inventou um perdão fiscal eufemisticamente chamado de plano de recuperação de dívidas ao fisco, que lhe rendeu imenso na cobertura do défice orçamental, mas, se efeito teve nos contribuintes dissolutos, foi o de os confirmar na convicção de que a evasão compensa. Sublinhe-se. Este ano a perda de receita fiscal aponta para valores da ordem dos 2.000 mil milhões de euros. O rombo no défice terá de ser colmatado custe o que custar, com Portugal, entre os países do euro em aflição económica e financeira, isolado na adesão ortodoxa ao limite dos 3% do PIB imposto pelo Pacto de Estabilidade e Crescimento.

E que se preparam as Finanças para fazer? Entre outras coisas, uma mega-operação de titularização de créditos fiscais e à segurança social, a vender talvez à banca, que imaginamos que renda muito, renda muitíssimo. Tanto que permita compensar não só parte considerável da perda de impostos, como a má consciência que ela não pode deixar de traduzir: é que a medida anunciada será a confissão final da impotência do Estado em cobrar o que lhe é devido por lei. E, por portas travessas, entregue à Finan-gest ou outra qualquer instituição bancária ou parabancária o cuidado de negociar a cobrança com os devedores, a extraordinária medida não deixará de ser um novo e encapotado perdão fiscal, ou seja, a reafirmação de que a fraude compensa, e pagar impostos a tempo e horas é para os tolos. O Governo, e a ministra das Finanças em particular, devem ao país, este ano, uma explicação. Quando forem apuradas as contas de 2003, terão de explicar o que esteve na origem do colapso.

O que se deveu a erros de projecção económica e financeira, “corrigidos” pela realidade da conjuntura adversa, e o que corre por conta de uma máquina fiscal, relativamente à qual se assume a incapacidade para contrariar o flagelo da fraude e da evasão. Terão de explicar a bondade da lógica que leva a que, não sendo possível cobrar o que é devido no momento certo, se opta por cobrar menos depois, para cobrar alguma coisa, reforçando o clima de impunidade no cumprimento dos deveres fiscais, a troco de alguns milhões para arredondar o défice.

E Governo e ministra das Finanças terão de tirar consequências políticas do caso. Se assim não for, ficaremos instruídos. De medida extraordinária em medida extraordinária para recuperar dívidas, a máquina fiscal do Estado terá passado a ser entendida pelo poder como assunto irrelevante, segundo a velha e perversa lógica de que o que não tem remédio remediado está. E a impunidade será a lei.

Jorge Campos da Costa, Redactor principal

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