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16 de Março de 2005 às 13:59

Punho esquerdo, pé direito

Sócrates parece inspirado no melhor do «cavaquismo», construindo uma figura acima da pequena política, quase ascética e estacionada acima dos interesses que se movem cá por baixo. Até o facto de aparecer sozinho em público, sem família, é uma repescagem d

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José Sócrates iniciou a sua governação com uma mão na discrição e outra na parcimónia. O silêncio com que desenhou o Executivo e o mutismo que impôs aos seus ministros e secretários de Estado – que devem permanecer calados até à apresentação do programa do Governo – aliou-se à sobriedade com que baniu o tradicional filme dos cumprimentos públicos após a tomada de posse. Pelo meio, a corrida da mini-maratona, o anúncio de que os medicamentos que não exigem prescrição médica serão de venda livre e o regresso à base das secretárias de Estado deslocalizadas, por Santana Lopes, para a província.

Intui-se um estilo governativo sóbrio e comedido, em oposição à forma festivaleira e desbragada com que Santana Lopes tentou ser primeiro-ministro. Sócrates parece inspirado no melhor do «cavaquismo», construindo uma figura acima da pequena política, quase ascética e estacionada acima dos interesses que se movem cá por baixo. Até o facto de aparecer sozinho em público, sem família, é uma repescagem da figura salazarista do homem que se entrega, solitário e abnegado, à pátria.

O povo do «centrão» gosta disto – do ar austero, poupado, determinado a enfrentar os «lobbies» corporativos. E as primeiras reacções ao estilo Sócrates são exactamente de apreço pelo formato minimalista do novo primeiro-ministro. Também a composição do novo executivo passou bem. A mistura entre tecnocratas independentes, como os ministros das Finanças e da Economia e os recuperados do «guterrismo», como os ministros da Saúde e das Ciências, senão provocou nenhuma onda de entusiasmo, também não arrepiou ninguém. E, com excepção de António Costa, o novo primeiro-ministro até evitou os «pesos-pesados» do PS no seu Governo, despolitizando-o com originalidade. A Freitas do Amaral coube o serviço de, simultaneamente, tapar o sumiço de António Vitorino e dar um ar de senioridade à coisa. Foi uma estratégia que resultou bem e que permitiu que o Executivo entre em funções com a simpatia dos portugueses e o primeiro-ministro parta com os seus índices de popularidade em alta.

Mas um estilo e uma forma não chegam para cumprir o mandato especial que Sócrates recebeu dos eleitores. Esta legislatura tem de ser a dos grandes ajustamentos estruturais. Que, inevitavelmente, gerarão tensões nos grupos de interesse e nos grupos sociais que necessitam de ser enfrentados. Não são apenas os farmacêuticos a precisarem de se resumir à sua dimensão. São também os grandes lobbies económicos, os funcionários públicos, os advogados, os médicos, os juízes e mais um sem número de corporações que só lucram com o atavismo em que o País se amarrou. José Sócrates, se quer mesmo deixar marca, precisa de uma extraordinária dose de perseverança e de determinação. Governar Portugal não é apenas gestão de imagem e expectativas. Hoje é, basicamente, coragem de afrontar gente que tem medo de se expor ao mercado.

E o estilo de Sócrates pode ser até o adequado: comunicar é uma função importante quando é preciso voltar a acreditar, como rezava a propaganda. Mas não chega para desatar os nós em que nos atamos. Onde se aponta o simbólico é preciso alterar a estrutura. Quando se abre uma guerra com os farmacêuticos, é preciso disparar também contra o corporativismo dos funcionários públicos, dos advogados, dos médicos, dos juízes. Quando se devolvem as secretárias de Estado à procedência, é preciso reformar a administração pública em todo o seu esplendor. Quando se pede aos ministros para se calarem, é preciso mobilizar os portugueses com um discurso sério, mas também esperançoso. As reformas inevitáveis na agenda dos próximos quatro anos são tantas e tão profundas que poucos acreditam na possibilidade da sua execução. Mas – e sem sabermos bem como – é sobre a capacidade de José Sócrates que o nosso destino e até a nossa esperança repousam agora. O homem terá as suas qualidades. Começou bem. Esperemos que se entusiasme com a onda que conseguiu fazer convergir sobre si para concretizar as manobras de que Portugal exige. Para já, é a única coisa que fica bem dizer. Chama-se o benefício da esperança.

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