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10 de Fevereiro de 2012 às 11:17

Pequenos episódios de dignidade

O valiosíssimo espólio de Carlos de Oliveira é entregue, amanhã, às 16.30, ao Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira.

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O valiosíssimo espólio de Carlos de Oliveira é entregue, amanhã, às 16.30, ao Museu do Neo-Realismo, em Vila Franca de Xira. É a viúva do grande escritor, Maria Ângela de Oliveira, que procederá à entrega. Autor de uma das mais significativas obras da literatura portuguesa, Carlos de Oliveira (1921-1981) foi, também, uma grande figura moral. Pertenceu a uma geração de oiro, na qual o compromisso com a época constituiu um marco decisivo.

Ao recordar o querido amigo e companheiro inesquecível, comparo a sua grandeza e a da geração a que pertenceu com a diluição ética dos autores actuais. E recupero a frase do filósofo Alain Badiou, para quem a "ausência de propósito social, na literatura, é a ausência da verdade como um todo." De facto, a época é propícia às armadilhas do individualismo; e parece que os escritores portugueses se afastaram, deliberadamente, por astúcia, estratégia ou cobardia, do próprio compromisso ético.

O país está de pantanas, devido a uma acção política desencadeada contra a natureza do regime democrático. Porque, não o ignoremos, o que está em causa é a assunção de uma ideologia, antagonista das realidades mais vitais de uma sociedade equilibrada. Passos Coelho é o rosto visível dessa política; no entanto, por detrás da aparência, habita um corpo doutrinário assustador, de que ele é, apenas, um factótum. Os resultados estão à vista, por essa Europa fora. A miséria, o descalabro social, a fome, o desemprego são como doenças endémicas. Não é só o caso da Grécia que exige de nós uma reflexão; é o avanço das propostas actuais que põe em perigo fatal quase todos os países europeus. Assim como Passos Coelho é o cego executor deste cometimento, também Angela Merkel e Nicolas Sarkozy são outros tantos títeres de um projecto ideológico que visa o domínio dos países.

Quando as ameaças tornavam sombrios o nosso viver colectivo, os autores portugueses manifestaram-se dos mais diversos modos e formas: pela palavra, pela acção, pelo protesto, pela indignação. "Nunca a inteligência portuguesa e o povo se bateram, tão bravamente, contra a iniquidade e a injustiça, como agora." Escreveu, na altura, o honrado jornalista republicano Carlos Ferrão, um dos profissionais de Imprensa mais dignos que conheci. E era verdade. Muitos desses homens e mulheres, que enfrentaram o opróbrio e a agressão, foram parar à cadeia, ao exílio e a outros infortúnios. Que fazem os escritores portugueses de agora? Acomodam-se no silêncio fofo das suas existências medíocres. Já o tenho dito e escrito, por repulsa que não consigo nem quero ocultar.

Carlos de Oliveira, como os demais seus camaradas, deviam constituir exemplo e referência. Ocasionalmente, ele é citado por alguns bufarinheiros que por aí se movem, travestidos de "escritores", e que o não são à força de o quererem ser. Até nisto a época permite o triunfo impune da aldrabice, e a transformação da mediocridade em glória.

Lembro-me de certa ocasião, no Chiado, com Carlos de Oliveira. Estávamos a ver os livros na monstra da Bertrand quando, reflectido no vidro, surgiu o rosto de um figurão, outrora democrata assanhado e, então, rendido aos fascínios do salazarismo. O tempo era perigoso e o silêncio era a forma de as pessoas se defenderem. O Carlos não conseguiu reprimir-se. Sem se voltar para o outro, e olhando-me disse, em voz bem audível: "Se este f. da p. se atrever a cumprimentar-me, leva um murro nos c." O indicado, espavorido, afastou-se rapidamente.

Independentemente da contracção que o domínio opressivo provocava nas pessoas, a raiva e a cólera, por vezes, explodiam. Um outro, médico e poeta, valente como as armas, refiro-me a Armindo Rodrigues, costumava juntar-se a amigos, na Livraria Bertrand, onde pontificava Aquilino Ribeiro. Conversava animadamente, como lhe era hábito, eis senão quando percebe que uma figura sorrateira escutava o que ele dizia. Suspeitou de que se tratava de um informador da PIDE. Agarrou-o pelos colarinhos, arrastou-o para a rua e pespegou-lhe um par de estalos. O suspeito correu pela Rua Garrett abaixo.

Quando alguém conhecido acedia em ir à televisão, já se sabia que era expulso da convivência do grupo. Não vale a pena nomear aqueles que se deixaram envolver pelo canto da sereia. Não foram muitos, mas foram alguns. Admitia-se que, aparecendo na televisão da ditadura, davam um aval de aquiescência, imperdoável naqueles tempos.

Uma última história de decência e honradez. Certa ocasião, Ferreira de Castro almoçava com Jorge Amado, de quem era grande amigo. Amado deixava o Partido Comunista Brasileiro. Um operador de câmara de RTP aproximou-se para filmar os dois escritores. Ferreira de Castro ergueu-se e disse: "A televisão, que sempre ignorou Aquilino Ribeiro, está proibida de me filmar!"

Eram assim as coisas. Para alguns de nós ficaram marcadas para sempre.



b.bastos@netcabo.pt
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