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21 de Janeiro de 2011 às 11:49

Os nossos companheiros fundamentais

Estamos em período de "nojo reflexivo"; mas, na realidade não precisávamos: as nossas escolhas estão feitas, e nenhum vencedor o será, rigorosamente, porque as divisões entre portugueses estão cada vez mais acentuadas.

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Falemos, pois, de outros temas. Quando batucava esta prosa, lembrei-me de Manuel da Fonseca. Alentejano, autor de uma obra pequena e importante, com pêlo na venta e uma predisposição inata para resolver afrontas com um par de murros. Aliás, ele jogara boxe e, como amador, chegara a ganhar um campeonato de Lisboa. Seria bom recuperar este escritor maior, de escrita apurada, expurgada, poética e mágica. Já poucos o lêem. O seu nome junta-se a essa longa lista de esquecidos e negligenciados pela nossa desatenção e pela estultícia de uma Imprensa desprovida da cultura da memória.

Era um homem muito atento às movimentações literárias, e um sábio quando, instado a isso, discreteava, com humor e talento, acerca dos livros que iam saindo. Fomos amigos e parceiros. De brigas nas noites de Lisboa, de cumplicidades na política, nesse companheiro largo e fraterno que só as afinidades electivas iluminam e justificam. Partilhámos muito do que a vida tinha para nos oferecer, até o dinheiro escasso e rateado, em épocas de apuro, aliás constantes.

Para o livro de "Poemas Completos" (título com o qual embirrava solenemente, pois dizia que não eram "completos" porque ainda não morrera e continuava a escrever), Mário Dionísio escreveu um prefácio memorável. A história de uma grande geração está concentrada num texto de que só a grandeza, a seriedade e a perspicácia de Dionísio poderia realizar. Aliás, penso que a obra de Mário Dionísio merece uma revisitação cuidada. É outro dos grandes esquecidos e a ausência em o ler só prejudica quem essa incúria pratica.

Possuo a obra dos dois. E cartas generosas e atentas de Mário Dionísio. Quanto a Manuel da Fonseca, encontrávamo-nos diariamente, durante anos a fio, nos cafés, nos bares, nas tertúlias que nos construíam e nos faziam reflectir. De vez em quando, releio-os. De Dionísio, é impossível uma pessoa culta desconhecer "Não Há Morte nem Princípio", "O Dia Cinzento", "A Paleta e o Mundo" (o mais significativo ensaio sobre artes plásticas, até hoje editado em Portugal) ou "Memória de um Pintor Desconhecido", poesia. Quanto ao Manuel da Fonseca, convém que o Dilecto, se o não leu, precipite-se e, através da Editorial Caminho, talvez ainda encontre "O Fogo e as Cinzas" ou "Aldeia Nova", contos; "Seara de Vento" ou "Cerromaior", romances.

Aprende-se mais com a leitura deste homens do que coma esmagadora mixordice que por aí se publica, sob a designação de "literatura." Há, nestes dois autores (e em outros, por igual maiores, da mesma geração, e estou a lembrar-me de Carlos de Oliveira) a preocupação imanente de compreender Portugal. Talvez seja uma arte instrumental e, até "comprometida", como então se dizia; porém, é arte mesmo, que recusa o panfleto sem enjeitar a imensa humanidade circundante.

Nunca estes intelectuais deixaram de intervir na sociedade. E esperávamos as suas opiniões, por vezes para formar as nossas próprias. É uma época que tem sido pouco estudada, embora a sua importância seja vital. Havia uma linha ideológica jamais quebrada, que entroncava com a ética e a moral deles mesmos. O número de escritores, arquitectos, actores, jornalistas, pintores, cineastas que se opunham à falsa neutralidade e à "distanciação" do factor social é impressionante.

Esse compromisso com o real era generalizado, na Europa, e constituía um peculiar alerta para as deficiências com que se vivia. O que se chamou, inapropriadamente, "realismo social", como definição de uma arte engajada, corresponde a uma necessidade imperiosa, que tem muito a ver com a ideia de um combate. Mas o conceito de compromisso, que teve o seu apogeu nas décadas de 40-50 e 60, com Jean-Paul Sartre marcando o ritmo de um pensamento originalíssimo, possui origens longínquas. A distanciação entre cultura e ideologia e entre esta e a política era considerada quase uma obscenidade. Em Portugal, a separação das águas foi significativa. E os ódios de estimação, assim como algumas traições morais, exprimiram-se de modos e formas diferentes, mas por igual agressivos.

Vale a pena reler os dois autores nomeados. E apercebemo-nos de que a maioria das suas obras mantém a frescura e a vivacidade que nos encantou e esclareceu. Será extremamente estimulante, podem crer, frequentar estes escritores. A sua actualidade, em muitos casos, atinge aspectos surpreendentes. E escreviam um idioma riquíssimo, belíssimo, e hoje praticamente irrepetível. São os nossos companheiros fundamentais.

b.bastos@netcabo.pt
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