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O tempo das leviandades não nos desampara a loja

A Europa está a estatelar-se e, em Portugal, discute-se o sexo dos anjos.

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Por aquilo que nos é dado saber, o Governo em preparo repesca muitos daqueles que, ao longo dos anos, nos arrastaram para este desastre. António Barreto exigiu, no discurso de 10 de Junho, o apuramento de responsabilidades. A ideia era justa, mas logo se ergueram vozes indignadas. Claro! Fazer o levantamento dos dez anos de reinado do dr. Cavaco, em que o dinheiro provindo de Bruxelas era tanto que afogava, é um acto e uma decisão muito complicados.

A distribuição de pastas é um concerto de pequenas vaidades. Fala-se no engraçadíssimo dr. António Lobo Xavier para não sei quê. O dr. Xavier é aquele senhor que aparece na "Quadratura do Círculo", programa da SIC Notícias, vestido como quem vai assistir a uma cerimónia no Palácio de Buckingham. O mesmo que, há alguns anos foi filmado a cantar, com os respectivos meneios, a emocionante canção "É o bicho, é o bicho!", do eminente compositor brasileiro Ivan Costa. E, ainda, aquele que dizem ser "quadro superior" das organizações Sonae, cujo chefe, o afável e simpático Belmiro de Azevedo, incorporou um desfile de apoio ao PSD e a Passos Coelho. Não me parece que, com criaturas deste jaez e estilo, vamos muito longe.

Os senhores que vão mandar nada nos dizem do que pensam sobre os acontecimentos europeus, cuja gravidade, necessariamente, irá atingir-nos. A violência na Grécia e, agora, na Catalunha, são sinais inquietantes e premonições que não podemos ignorar. Ninguém vai às televisões e aos jornais explicar aos indígenas sobre que vulcão estão a viver. As convulsões deste tipo são contagiosas e, não tardam, vão tocar-nos no batente.

Os indícios e as afirmações de Passos Coelho acerca do que será a política governamental fazem-nos estremecer. Além do "diktat" da troika, Passos quer ir mais além, numa avançada que me parece (e não só a mim) uma brutalidade sem nome. Evidentemente, a resposta é previsível. A famosa frase de Salazar, para nos caracterizar: "Somos um país de costumes brandos (e de hábitos morigerados", é assim que fecha) não tem razão de ser. A ferocidade nacional é latente, e a Imprensa está pejada de violências e de atrocidades cometidas por questões frequentemente menores.

A expectativa em que vivemos oculta a explosão que o medo sempre provoca. Por outro lado, a Imprensa está cada vez mais reduzida aos "fait-divers", removendo para os fojos, por notória ignorância, desprendimento ou indiferença os problemas reais que nos afectam ou vão afectar. Há uma decadência larvar na sociedade portuguesa. Nada é esclarecido, nada é debatido, nada é clarificado. Assistimos à elegante saída de Paulo Portas de uma reunião certamente importante e parece-nos que ele, haja Deus na Sua infinita misericórdia!, acabou de assistir a uma boa almoçarada.

No tempo de Sócrates existíamos na onda de virtualidades. Na era de Passos-Portas estamos a entrar, tudo o indica, na cena do azougue pelo azougue. Ao que vamos assistindo, nada de bom nos surge. Passos atribui a tudo quanto faz um ar de seriedade e de gravidade sem mácula; Portas um dinamismo sem direcção, que continua a fazer dele um rapazola imaturo. Mas em tudo isto a imaturidade desponta como a constância de uma fé.

Manifesta-se, nos nomes que urgem nos jornais, nas perguntas de jornalistas impreparados, nos comentários absurdos dos comentadores de sempre, um desfile de leviandades e de folclore que nos aterroriza. Mas é o que temos e para o que nos empurraram.

Há dias, fui apresentar, na Bertrand do Picoas Plaza, um belíssimo e surpreendente livro de António Luís Marinho, "1961: o Ano Horrível de Salazar", cuja leitura vivamente e insistentemente recomendo. Marinho é um jornalista honrado e limpo, desses que recuperaram e defendem a velha escola do jornalismo como função social e pedagógica. O volume, com comentários extremamente lúcidos, e um notável prefácio de António Barreto, é uma retrospectiva paciente e didáctica do que foi o começo de uma década decisiva. Profuso nas ilustrações, fornece-nos o retrato implacável de uma época que alguns tentam apagar da nossa memória. Percorremos esse passado e percebemos, através da selecção minuciosa de Luís Marinho, o que nos aconteceu, talvez por inércia, acaso por leviandade, mas sempre por indiferença. O salazarismo sobreviveu à sua morte, e muitos resquícios da ideologia ainda persistem, com inquietante presença.

Na sessão vi muitos dos meus velhos camaradas que resistiram por comportamento moral. E o livro de Marinho completava o quadro de uma época e de um grupo de então jovens jornalistas que pretendiam mudar o mundo através do poder e da grandeza das palavras. E agora? Podem crer que o livro fornece-nos algumas respostas para compreendermos os sinais deste tempo.



b.bastos@netcabo.pt

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