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Opinião
02 de Julho de 2007 às 13:59

O rumor desnecessário

Aqui critiquei, na semana passada, a propósito da vida pessoal de Ségolène Royal, o anúncio público, deliberado e calculista, da ruptura do casal com fins políticos. Nem uma semana depois, com a Mancha de permeio, chega do Reino Unido uma nova versão do n

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Há muitos anos que a Inglaterra não tinha três governos consecutivos chefiados pelo mesmo primeiro-ministro. E há muitos anos que não conhecia, a par da estabilidade política e social, um tão sustentado crescimento económico. Por outro lado, porque a vida não é só feita de números, nos últimos dez anos, sem quebrantos nem ciclos pessoais, Tony Blair emprestou à política britânica uma vivacidade e uma alegria pouco comuns e uma convicção que, mau grado o erro crasso do Iraque, o credibilizou de maneira firme. A transição de posto para Gordon Brown desenrolou-se de forma pacífica, ao fim de tanta espera deste. E a sua despedida do Parlamento uniu, no generalizado aplauso, os eleitos. Blair sai bem. Melhor era pedir o céu na terra. Mas o homem, também ele, cedeu à tentação. E permitiu que, uma semana antes de abandonar a chefia do partido e do governo, fossem publicadas notícias sobre um lado pessoal íntimo, talvez o mais íntimo de todos, o mais próximo da alma e, por isso, o mais privado – o dos contornos da sua fé. Visitando o Vaticano, na qualidade de primeiro-ministro, Blair quis que a audiência com o Papa tivesse "também uma dimensão pessoal" – que terá sido a confessada e seguramente abençoada intenção de se converter ao catolicismo. Nada de mais respeitável. Para quê, porém, o anúncio pública da intenção? Para quê a publicitação da oferta ao Papa de três fotografias do cardeal John Henry Newman, célebre líder anglicano que, no século XIX, se converteu ao catolicismo? E se, como sugere um porta-voz, Blair quis evitar que esta visita se transformasse num espectáculo, o que só abona ou abonaria em seu favor, para quê, para lá do seu biógrafo, se fez acompanhar por cinco jornalistas britânicos? A fé é transmissível, é até desejavelmente transmissível, porque deve ser o contrário do egoísmo e deve conduzir à alegria partilhada. Mas antes disto é do foro íntimo. Ou se tem ou não se tem. Não é negociável, não é de apresentação social, não é um assunto de Estado ou não deve ser vista como tal. E mesmo quando se teve fé e se perdeu a fé, continua, talvez por maioria de razão, a ser assunto privado, mesmo para as figuras públicas. As tristezas não têm todas de ser reveladas. Do mesmo modo, quando se não tinha fé e se obteve esse privilégio, essa ventura continua a ser um assunto privado. As alegrias não têm todas de ser reveladas. Asserção que é válida, por analogia, com as transições religiosas ou com as conversões às religiões.

Existiram, no passado, grandes figuras britânicas que também seguiram o caminho da conversão. Mas não o anunciaram antes. Uns descreveram-no depois, ainda novos, em livros publicados (como Graham Greene ou Evelyn Waugh) ou permitiram o aprofundamento do assunto por parte dos seus biógrafos. Outros, depois de terem confessado que resistiam a tudo menos às tentações, converteram-se no fim da vida (como Oscar Wilde) e só depois se soube do fascínio que nutriam por uma fé que os ajudasse e serenasse. Não se conhecem, no passado, casos de grandes figuras públicas que anunciavam a intenção de conversão ou as dúvidas que ainda lhes restariam a esse propósito. A alegria pela decisão ou a angústia pela hesitação eram remetidas para o baú das coisas classificadas. Iam para a arca que seria aberta depois, talvez muito depois. Blair fez o oposto. Prestou declarações sobre o assunto. Mais: permitiu que se soltassem as línguas e se espalhasse o rumor. Ele que teve uma banda, quando novo, que crismou de "Maus Rumores" ou aparentado, permitiu, no caso, um rumor desnecessário. O que é que ganhou com saber-se? E o que ganhámos nós ? Os parabéns nunca se dão em matérias do foro absolutamente privado. E muito menos quando se tem a sorte de por elas se ser tocado.

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